Depois de uma semana em que meio país pareceu encantado com as mobilizações ao torno dos direitos das mulheres, se convocaram manifestações e “greves feministas”, se lançaram flores ao Tejo fazendo juras de irmos viver um novo dia, dois reality shows na noite de domingo foram um verdadeiro balde água fria. As activistas indignaram-se – indignam-se sempre – contra a alegada exploração dos estereótipos de género e pediram a intervenção dos censores – pedem sempre.

Erraram o alvo: deviam antes envergonhar-se pelas mães, filhos e filhas que se prestaram a fazer aquelas figuras. Pelas audiências conseguidas. E interrogar-se sobre até que ponto o que as televisões nos mostraram é o retrato do país que somos – aquele que somos mesmo mas não queremos admitir.

Nestas alturas lembro-me sempre de uma frase apócrifa atribuída a Rodrigo da Fonseca – “nasci entre brutos, vivi entre brutos, morri entre brutos” – e apetece-me pensar, mais de 160 anos passados sobre o desaparecimento do estadista oitocentista, que Portugal continua teimosamente a ser esse “país de brutos”.

Depois dou um passo atrás e reparo que aqueles reality shows, como todos os reality shows, funcionam como ilusões de óptica. Eles não vivem da realidade, mas da distorção da realidade. E que programas como estes há por todo o lado, mesmo nos países mais desenvolvidos, mesmo naqueles onde é mais elevado o grau de literacia e que estão bem acima de nós em indicadores como o “índice de desenvolvimento humano” ou o número de Prémios Nobel. Não é só por cá que se explora a pornografia da “alma” humana com basto sucesso.

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Por isso não encontremos desculpas: o nosso problema não é “nascer entre brutos, viver entre brutos, morrer entre brutos”, pois brutos há por todo o lado. O nosso problema mais depressa é querermos culpar os brutos, fixando neles o olhar como o tolo fixa o olhar no dedo que aponta que a Lua e nunca é capaz de olhar para essa mesma Lua.

A nossa arte é parecida: é nunca querer olhar para os problemas. E mesmo quando é impossível ignorá-los, é nunca tratar de os resolver, antes de os empurrar com a barriga. Para isso o importante é desconversar.

Querem exemplos? O melhor de todos os exemplos é a falta de crescimento económico, porque sem esse crescimento nenhum outro problema do país terá solução sustentável. E falo de um crescimento que se veja, não de um crescimento que só é maior “do que a média da zona euro”, como anda por aí a repetir o primeiro-ministro, porque isso só acontece como consequência de as maiores economias da zona euro (Alemanha, França, Itália) estarem em dificuldades.

A realidade, a dura realidade, é outra. É esta: em 2016, primeiro ano da geringonça, o PIB per capita de Portugal era o 14º entre os 19 países da zona euro. Em 2017 descemos para 15º (fomos ultrapassados pelos Eslováquia) e em 2018 descemos para 16º (fomos ultrapassados pela Estónia). Atrás de nós só temos agora a Lituânia, a Grécia e a Letónia. Como podemos falar de termos o “Ronaldo da Finanças” quando descemos sempre na classificação?

Há algum ranking em que Portugal esteja em primeiro lugar? Há: somos o país da Zona Euro onde, de acordo com a OCDE, é necessário perder mais horas para cumprir com as suas obrigações fiscais. Nada menos do que uma média de 243 horas por ano. Na Estónia, um dos países que nos ultrapassou, só são necessárias 50 horas. É um indicador que diz imenso sobre a ineficiência do Estado, sendo que a administração tributária ainda é dos menos ineficientes. Nem imagino o resultado que daria uma auditoria à Segurança Social…

Outro indicador: de acordo com dados do Banco Mundial, Portugal aparece em 57º lugar no ranking dos países ordenados pela facilidade em abrir um negócio, atrás da Ucrânia e à frente de Tonga. Digamos que não é melhor das companhias, mas o lugar só surpreende quem nunca esbarrou nas complicações que são o desporto favorito da nossa administração pública.

Agora pergunto: se um crescimento anémico é um dos nossos principais problemas, se sem mais crescimento nada mais conseguiremos do que repetir o triste espectáculo dos cães que perseguem a própria cauda, ora carregando nas cativações, ora no desinvestimento, ora na satisfação das corporações, sempre à espera de tropeçar na próxima crise, porque andamos sempre a saltar de debate em debate sem nunca chegarmos a nenhuma conclusão?

(Deixem-me aqui fazer justiça a um novo partido, a Iniciativa Liberal, que tem procurado colocar este tema na agenda, usando nomeadamente no seu Facebook os números que citei atrás.)

Um bom exemplo de como é fácil distrairmo-nos do essencial é vermos como foi tratada a substituição de Maria Manuel Leitão Marques por Mariana Vieira da Silva na recente remodelação ministerial. Essa substituição da responsável pela pasta da Modernização Administrativa tinha dois problemas – um que foi amplamente debatido e o outro que foi olimpicamente ignorado.

O primeiro relacionava-se com as relações de parentesco na nova ministra com outro ministro, por acaso, ou nem por isso, seu pai. Num executivo onde à mesa do Conselho de Ministros já se sentavam marido e mulher, passaram a sentar-se pai e filha. Um mínimo de decoro teria impedido que isso sucedesse, mas o círculo cada vez mais pequenino da governação foi-se fechando sobre ele mesmo. O país, indiferente, encolheu os ombros – o nepotismo não choca os hábitos nacionais.

O segundo problema, aquele que foi ignorado, relaciona-se com as competências de Mariana Vieira da Silva para substituir a ministra para quem, segundo o primeiro-ministro, “não havia impossíveis”. Tanto não havia que até lhe ofereceu a célebre “vaca voadora” no dia da apresentação de mais uma geração do Simplex. Seria interessante saber o que aconteceu às 255 medidas então anunciadas, mas ninguém duvidava das credenciais da anterior ministra. Já sobre aquilo que Mariana Vieira da Silva, basicamente uma operacional política que passou quase toda a sua vida profissional em gabinetes governamentais e de quem não se conhece qualquer contacto com o mundo real das empresas e da economia, pode fazer para desatar alguns daqueles nós que colocam Portugal no fim dos rankings no que respeita à eficiência da Administração Pública, nada se conhece.

Contudo, nos dias que se seguiram a esta nomeação, ouvi ou li vários jornalistas e comentadores, daqueles que se movimentam muito bem nos meandros da política, a elogiar as competências de Mariana Vieira da Silva. Sabendo o que sei de como as coisas se passam só encontro uma explicação: são pessoas do mesmo mundo, de certa forma cúmplices (sem sentido pejorativo) no funcionamento da máquina político-mediática. Vivem na mesma bolha.

É assim que passamos da “vaca voadora”, onde ainda se podia vislumbrar alguma ambição de fazer alguma coisa para tornar o Estado mais eficiente, a vida dos cidadãos mais simples e, por via disso, dar uma ajuda ao crescimento da economia, à nossa pequena aldeia que é só uma parte de Lisboa, algumas ruas, alguns corredores, alguns bares, alguns restaurantes e, claro, os palcos de todas as televisões, onde quase todos se cruzam e onde o que realmente fascina são os truques e malabarismos da pequena política.

Nesta “aldeia” onde Mariana Vieira da Silva se deve sentir em casa (ela até está em família), quem se lembra que o principal problema do país é o crescimento e que um dos principais entraves a esse crescimento é o peso e ineficiência da máquina do Estado?

É por estarmos presos neste micromundo fechado e onde todos se protegem mutuamente – partidos que não se renovam, governantes que se repetem, famílias que se instalam, universidades dominadas pela endogamia, incumbentes imunes à competição e tudo o que é típico de um país habituado a que uma mão lava a outra – que aqui mesmo os mais talentosos definham e os melhores emigram.

Culpar “os brutos” será sempre fácil, mas inútil e, no limite, triste senão cobarde.