1. Há imensas crianças com medo de palhaços. Porque têm uma “bocarra” desenhada com contornos vincados. E uns olhos que saem das órbitas e, em condições normais, intimidam. Porque têm umas mãos grandes e pronunciadas e, sobretudo, tão brancas, que sugerem um bocadinho a morte. Mas os palhaços fazem rir. Começando pelo excesso da sua imagem. Continuando pela forma como pronunciam os gestos. E a própria fala. E engendram patetices óbvias e rábulas previsíveis que, talvez por isso mesmo, nos despertam ternura.

A forma como os palhaços começam por ridicularizar a sua imagem compensa-se com o modo como se empenham em devolver o riso às crianças. Há, portanto, neles uma dimensão de bondade. E é por isso que me incomoda que algumas pessoas usem “Palhaço!” como um insulto.

A curiosidade que desperta um palhaço não tem só a ver com a sabedoria com que nos resgata para o riso. Mas, também, com a forma como o riso das crianças, sobretudo, nos contagia e, de repente, o mundo parece simples e cúmplice.

Nas feiras, para além dos palhaços, havia uma tenda onde algumas pessoas eram expostas e ridicularizadas pelas suas características físicas. Eram disso exemplo o homem mais alto e o homem baixo do mundo. As pessoas acorriam. Acotovelavam-se. Riam-se. Eram exuberantes nas suas reacções. Faziam comentários humilhantes. Exibiam-se com alguns impropérios que lhes dirigiam. E, depois da chacota, saíam sossegadas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Já nas histórias — é claro que nada disto parece ter a ver com nada — a Carochinha não se expunha. Ia para a janela e, com preparos que nos deixariam muito zangados se a nossa filha os tivesse, perguntava quem queria casar com ela. O resto da história já a sabem. O João Ratão, talvez porque uma viúva insinuante lhe tivesse aberto o coração, casou com ela e, porque porventura ele fosse mais à procura duma boa cozinheira do que de um grande amor, precipitou-se no caldeirão e morreu cozido. Pela gula, suponho eu.

2.  Há, neste momento, muitos programas de televisão em que as pessoas procuram, “em directo e ao vivo”, encontrar quem se case com elas. E se expõem de todas as formas possíveis, como se nada as comedisse. Estas pessoas não são palhaços! Mas fazem lembrar o homem mais alto e o homem mais baixo do mundo. Expõem-se! Prestam-se a tudo. E as televisões, movidas pela gula das audiências, esquecendo-se das consequências que ela teve para o João Ratão, criam com estas pessoas uma espécie de tendas de feira, em horário nobre, para que nos possamos entreter com as figuras que elas fazem.

A mim, não me incomoda só a forma como as mesmas televisões que são contra a violência sobre as mulheres incentivam um outro tipo de violência de género, usando mulheres. Alimentando lugares-comuns sobre as mulheres. Sejam elas as candidatas a Carochinha ou as mães do pretenso João Ratão.

Mas incomodam-me, também, os homens. Que se prestam a interpretar o João Ratão. Movidos por uma condição celibatária que parece levá-los a querer uma mulher, utilizando a televisão como uma janela, e fazendo de Carochinha, colocando-se numa posição do género: “Quem quer casar com o João Ratão?…”.

E incomodam-me as mães que, por vezes, parecem querer uma cozinheira, uma amante ou outra variante de mulher para o seu filho demitindo-se, todavia (como qualquer mãe tem de fazer) de o interditar a fazer figuras menos abonatórias que, depois dos cinco minutos de fama, o vão ridicularizar para sempre.

E incomodam-me, sobretudo, as pessoas que se sintonizam com estes programas e achincalham, no recato do lar, pessoas consumidas por uma insensatez temporária, não precisando de ir a uma tenda de circo para se sentirem sossegadas de cada vez que descobrem nestes programas uma espécie de espelho mágico que as leva a reconhecer que, havendo tantas pessoas a fazer figuras tão feias, elas só podem ser bonitas. Ora, lembrem-se da madrasta da Branca de Neve: quem precisa de gozar com os outros para se sentir bonito não vai longe. E, no fundo, sabe bem que talvez seja bem mais feio do que o espelho ou estes programas lhe dão a entender.

E incomodam-me as televisões. Que, à boleia de formatos importados (como quem nos acena com a evolução dos outros países), expõem pessoas e pactuam com uma espécie de pornografia da “alma” humana que “merdifica” as pessoas como se todos nós não valêssemos nada. É, para mim, uma estranha forma de acarinhar os valores da humanidade. E a democracia!

3.  Escuso de vos dizer que, depois de tudo isto, gosto, como aliás nunca gostei, dos palhaços!

*Eduardo Sá é psicólogo clínico e psicanalista. Este texto foi publicado originalmente em eduardosa.com