1 O populismo depende, habitualmente, de uma fantasia: vende soluções que não resolvem problemas, inventa problemas que não precisam de solução e empoleira-se em problemas que ainda não têm soluções. O populista é, na sua ação, um fabricante de realidades alternativas onde só as suas informações, sentimentos e ímpetos são válidos ou tomados por verídicos. O resto, tudo o que lhe desagradar ou for de inconveniência, é dispensado ou desvalorizado como falso. Qualquer oposição é propaganda. Qualquer crítica é demagogia. Qualquer dúvida é desnecessária. Qualquer denúncia é falsa. O populista não procura o poder nas baias do poder porque ele corre noutras para chegar ao mesmo; isento das mesmas regras, do mesmo vínculo à verdade, da mesma bitola moral. Trump, no ano em que foi eleito, disse que “poderia alvejar um gajo na Quinta Avenida sem perder um voto”. Costa comporta-se com idêntica impunidade.

Um populista é o autor de uma ficção mais ideal e bela do que a realidade, de modo a substituir essa realidade – e não terá sido isso “o fim da austeridade” ou o “Make America Great Again“?

Em Portugal, no primeiro semestre de 2020, esses papéis proliferaram. O poder – portanto, o Governo –, que deveria lidar com a realidade, revelou não só ser antes um produtor de ficção, como um protagonista desta. Os ministros do Partido Socialista (a Marta, que desaconselha “mamar copos” e dança na televisão pública, como genial comic relief) mais parecem viver numa realidade alternativa, na representação de uma fantasia, distantes do que é real e preocupa as pessoas, do que propriamente ministros – a ministrar qualquer coisa. Como se não estivessem apenas dentro da bolha, mas tivessem também sido, ao mesmo tempo, quem soprou o sabão que a fez nascer.

Perante isto, os populistas, que, como vimos, são tradicionalmente os autores da ficção, tiveram apenas que berrar a realidade. Porque a realidade, como também vimos, está entregue a ficcionistas. A incoerência total na mensagem e nas regulações do Estado, as festarolas inusitadas por toda a parte, Centeno como melhor ministro “de sempre” e melhor governador “do planeta”, a TAP como empresa determinante para a salvação nacional, a tão valiosa final da Champions que mereceu afinal isenção fiscal. Tudo conversa, tudo teatro.

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2 Não quero, com isto, perdoar ou desvalorizar a intimidade entre os nossos populistas extra-governamentais e as suas inverdades. Esse é um namoro antigo, eterno e previsível, que os atributos ilusionistas do Governo não devem relativizar. O que se passou no fim-de-semana passado, com a ironia de decorrer numa avenida chamada Liberdade, foi mais um elaborado esforço de André Ventura para, além de aproveitar uma realidade extraordinariamente avessa ao que seria normal, fabricar uma ficção dissimulada, em que pode parecer sem ter de ser. A manifestação anti-anti-racismo, que não merece outra designação, pretendeu transformar algo consensual, que não somos todos racistas, numa bandeira minoritária. A fraca adesão deveu-se à fraca indignação. O protesto foi derrotado assim que começou, porque o seu verdadeiro objetivo não era acontecer; era ser impedido e proporcionar vitimização.

O aceno, que claro que foi só um aceno (para quem só quiser ver o aceno) e claro que foi uma saudação nacional-socialista (para quem quiser vê-la), serviu para isso mesmo: quem quer concordar pode concordar, quem quer desmentir pode desmentir, quem quer normalizar pode normalizar. Dá para todos. Para nazis, que exultam com as fotografias, para quem não é nazi, que as pode condenar, e para quem não se quer dizer nazi, que pode responder que “foi só um aceno” ou, para morrermos todos a rir, “uma saudação romana”. A Ventura, que lidera um partido em ascensão, o que interessa é aparecer. E assim foi, não se tratando de uma estreia.

As suas declarações de “não me importo que me chamem populista” não eram uma afirmação taxativa de populismo, jogos de palavras como “se ser de extrema-direita é isto, então sou” não foram uma assunção categórica de extremismo, a sua renitência em aprovar louvores a Aristides de Sousa Mendes não continha anti-semitismo explícito e a sua mão contraída e frontalmente apontada numa manifestação apoiada por neo-nazis não era, jura ele, um coming out hitleriano. Reparem como é sempre assim. André Ventura nunca diz diretamente, mas também não desdiz propositadamente. Abre a possibilidade e deixa a dúvida. Os seus gestos e frases são taticamente fermentados nesse cinismo: dá o sinal, mas preserva a margem de recuo; seduz quem está nos extremos, mas garante uma ambiguidade que lhe permite continuar na arena mediática do regime. Não é novo e só cai quem quer. Mas começa a ser difícil encontrar alguém cujo programa para Portugal não seja, em suma, a mentira.

No brutal oceano em que flutua o mundo de hoje, cá estamos nós; uma ilha dos enganos, chefiada por farsantes, sem grandes horizontes, submersa em licores baratos, uns toldos meio rotos e um belíssimo pôr-do-sol, como alegre destino alheio, tristemente sem destino seu.