A história da censura é longa e universal. Cinquenta anos passados do 25 de Abril, importa reflectir acerca das razões de estado invocadas para proibir determinantemente a leitura de uma ou de várias obras de um autor. O caso português é particularmente interessante. Num país de analfabetos, proibir a leitura parece ser um número de comédia semelhante a proibir um cego de ver televisão.

É um facto que na década de cinquenta, cerca de 41.4% da população não sabia ler nem escrever. Através da implementação da escolaridade obrigatória a partir de 1964, é certo que esta percentagem foi decaindo lentamente com o passar dos anos: 33.1% na década de 60; 25.6% na de 70; 18.5% na de 80. Esta progressiva descida traduz-se, no ano de 2021, em uns significativos 3.1%, ou seja, um universo de cerca de 275 mil analfabetos. Este número ainda impressiona quando comparado com a população da cidade do Porto em 2022, cerca de 240 mil habitantes…

Torna-se evidente que o progressivo aumento de livros e autores censurados pelo Estado Novo cresceu à medida que a população foi sendo alfabetizada. É certo que a censura era holística por natureza – jornais, revistas, peças de teatro, pintura, música, filmes, televisão — tudo foi alvo desse olhar míope e ignorante. A literatura, porém, representa um caso particularmente interessante. O universo de autores censurados e proibidos pelo Estado Novo é impressionante. O investigador José Brandão compilou em 2021 uma lista com cerca de novecentos títulos censurados e proibidos entre 1933 e 1974. A dimensão impressiona e ilustra, por antinomia, tudo aquilo que o regime mais temia. O Índex constitui uma espécie de reflexo de uma sociedade que já não se revia nos valores serôdios do velho mantra: deus, pátria e família. Poderemos identificar aqui duas formas de temor de que o Estado Novo manifestamente padecia. Por um lado, um temor irracional da manifestação pura das ideias. Por outro, o efeito reflexivo que essas mesmas ideias poderiam causar nos cidadãos, ou seja, uma disrupção do pensamento único e uma tomada de consciência da sua própria condição social, cultural e política.

Quem já leu o fabuloso O Queijo e os Vermes: o quotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição, de Carlo Ginzburg, compreenderá, certamente, o risco que essa disrupção sempre representou, tanto para as instituições dominantes, como para os livres-pensadores. A história verídica de Domenico Scandella, dito Menocchio, é fácil de contar. Foi um moleiro que nasceu em 1532 em Montereale, uma pequena aldeia situada na região do Friuli-Venezia Giulia. Através dos autos do processo da inquisição, Ginzburg pôde reconstruir o universo de leituras que condenaram Menocchio á fogueira: o Decameron de Boccaccio; Il sogno dil Caravia de Alessandro Caravia; o Rosario della gloriosa Vergine Maria de Alberto da Castello; a Viaggi di sir John Mandeville atribuída a Mandeville. Estas leituras, quando conjugadas com a sua mente fértil e irrequieta, transformaram Menocchio numa espécie de filósofo capaz de questionar abertamente alguns dos dogmas impostos pela igreja. Quando interrogado pelo santo ofício, Menocchio confessou: “Senhor, nunca encontrei alguém que tivesse estas opiniões. As minhas opiniões saíram da minha própria cabeça”. Aos nossos olhos, Menocchio tentou libertar-se das amarras do pensamento único. Aos olhos do santo ofício não passava de um heresiarca a pedir fogueira.

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É verdade que o Estado Novo olhava para os portugueses com o mesmo paternalismo com que o santo ofício olhou para Menocchio. O livro e a leitura, quando libertam em vez de aprisionar, tornam-se perigosos e venais. E a liberdade aqui representa o pleno exercício do pensamento, da formulação de ideias e do questionamento dos dogmas que o velho mantra repetia à exaustão: deus, pátria e família; deus, pátria e família; deus, pátria e família… O Índex do Estado Novo revela assim por antinomia o verdadeiro catálogo de tudo aquilo que era considerado abominável: o anticlericalismo; o feminismo; a liberdade sexual; o humor; o livre-pensamento; a outra margem política… Em suma, o retrato de uma sociedade progressivamente emancipada.

É difícil escolher um só autor numa lista de novecentos. Sendo o Índex do Estado Novo o reflexo antinómico dos seus valores, guiemo-nos então pelos comentários dos próprios censores: «Este livro cínico e despudorado revela uma ousadia que bem se pode qualificar de desafio às Autoridades, pois que abertamente as ataca, e apresenta textos em que todos os assuntos indesejáveis são largamente exibidos. Assim, faz abertamente propaganda comunista, achincalha com diatribes dissolventes a Família, a ordem social e a religião católica, é escrito com linguagem desbragada, tem passagens da mais baixa obscenidade, ilustrações imorais e, tão maciça é a sua inconveniência, que ocioso se torna fazer citações». Este comentário acerca da obra de José Vilhena, Branca de Neve e os 700 anões, torna-se por demais revelador.

Numa altura em que o papel da mulher na sociedade, a família e outras questões quejandas já resolvidas por uma sociedade madura e evoluída voltam à liça, fazem falta mais Vilhenas. A leitura aberta e vociferante desta e de outras obras continua a ser fundamental. Na próxima 3ª feira, dia 23 de Abril às 18:00h, no âmbito da comemoração do 25 de Abril em Letras será realizada uma sessão de leitura intitulada Noite dos Livros Censurados. Apareça e partilhe livremente a sua voz.