Num país em que “o respeitinho” e o temor reverencial são dominantes, o apreço pela liberdade de expressão, por poder pensar e dizer o que se entende e por poder expressá-lo com a amplitude entendida (plateia, imprensa, redes sociais) é ainda mais importante.

No entanto, poder expressar e dizer o que se entende não significa discriminar, insultar ou ofender, indistintamente. Expressar e dizer o que se entende não significa também mentir. Não significa também, ao abrigo de uma atitude aparentemente corajosa, porque histriónica e audível, dizer coisas que propositadamente choquem, transformando a palavra e a comunicação num espectáculo de boçalidade indizível.

Este dizer “as verdades”, dizer o que os outros não se atrevem a dizer, muitas vezes não é mais do que uma validação dos desconfortos e preconceitos dos destinatários. Dizer “as verdades” é bastante diferente de dizer a verdade. Normalmente quem diz “as verdades” predispõe-se solicitamente a instrumentalizar essas pretensas verdades.

Mas, independentemente de o que se diz ser verdade, serem “as verdades”, ou ser mesmo mentira, uma coisa é certa: é preciso pelo menos poder dizê-lo, sem constrangimentos ou repercussões coercivas. Sem imposições desproporcionais do poder punitivo do estado na esfera de liberdade do indivíduo.

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Essa desproporcionalidade tem vindo a ser assinalada em diversas condenações do Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O caso Veiga Cardoso contra Portugal, cuja decisão foi publicada a 16 de janeiro, concluiu pela violação do direito à liberdade de expressão por Portugal, devendo o Estado ressarcir o requerente em 18.696,15 euros. Veiga Cardoso tinha sido condenado pelos tribunais portugueses por difamação agravada, por ter dito a um procurador que este consumia demasiado álcool. O tribunal europeu considerou que esta condenação não podia ser considerada proporcional, não sendo necessária numa sociedade democrática, tendo o direito à liberdade de expressão de Veiga Cardoso sido violado.

Uma dimensão muito relevante da liberdade de expressão é precisamente esta: a importância que lhe é conferida no confronto entre dois valores: a liberdade de expressão e a honra ou reputação.

A tendência da jurisprudência dos tribunais portugueses nesta matéria permite constatar que em Portugal não existe uma cultura de verdadeiro apreço e protecção desta liberdade, existindo antes o inverso: uma valorização desproporcional e desactualizada da honra. No país do “respeitinho”, é natural que assim seja.

Este é um factor a ter em atenção quando falamos da protecção da liberdade de expressão. Outro factor a ter em atenção são os adeptos da remoção de partes de livros que podem ser consideradas ofensivas ou pouco correctas, admitindo a eliminação de parte da sua originalidade e autoria, assim limitando a liberdade de expressão artística, outra dimensão da liberdade de expressão.

Portugal tem de facto caído nos índices de liberdade de expressão. No “global expression report 2023” Portugal surge em 15.º lugar, tendo caído sete lugares desde 2022. Em 2023 Portugal também teve a pior descida de sempre no ranking do Estado de Direito. Este índice tem vindo a decrescer não apenas em Portugal mas em outros países europeus, dado que a tendência é de aumento de movimentos populistas que reclamam um estado musculado, um rule by law em vez de um rule of law e, por consequência, menos liberdade.

A liberdade de expressão, muitas vezes dada como adquirida, deve ser protegida e cuidada, nas suas várias dimensões. Esta é fruto da liberdade de pensamento, que vive apenas sem espartilhos. Vivemos tempos em que os extremos crescem, e em que o pensamento binário parece ser o único possível. Na guerra do que se pode ou não dizer, do que se pode ou não pensar, esfuma-se também o valor da liberdade de expressão. Crescem ódios, e cresce também a verdadeira intolerância. Sem tolerância e moderação não se encontram soluções para as guerras culturais. Ceder à retórica do certo e do errado, dos bons e dos maus, seja de que lado for, tem apenas um único resultado: menos liberdade de expressão, menos liberdade.

E é mesmo preciso cuidar da liberdade, porque em era de policiamento mais ou menos suave mas cada vez mais evidente, em breve apenas quem diz “as verdades”, sejam elas quais forem, desde que exaltem o público certo, terá autorização para verdadeiramente dizer alguma coisa.