A temida terceira vaga da pandemia de Covid-19 veio com muita força e atingiu em particular a Europa e os EUA. Segundo o Financial Times, em Março de 2020 a média diária de mortos no mundo andava em torno dos 400, na segunda semana de janeiro de 2021 ela era de 13.600, com a União Europeia, a Grã-Bretanha e os EUA a representarem mais de metade desse total. Pior ainda, Portugal surge como o primeiro país do mundo, a par da Inglaterra, em número de mortos relativamente à sua população, com respetivamente 2,2 e 2 mortos em média por 100.000 habitantes. O que dizer? O que fazer? Para responder, algum eurocentrismo será inevitável.

Quem ganha geopoliticamente com a Covid-19?

Como fui escrevendo nestas páginas e comentado no Café Europa, a história mostra que nenhum país está plenamente preparado para uma pandemia. Este tipo de emergências é sempre um teste difícil para qualquer governo ou regime. Mais, a pandemia é uma realidade dinâmica, temos de ter cuidado com conclusões definitivas. Dito isto, duas coisas são claras neste primeiro ano de pandemia. A primeira é que os países da Europa e os EUA têm tido um pior desempenho no controlo do vírus do que vários países asiáticos. E não estou a falar apenas do desempenho da China, que depois de ter perdido o controlo na crucial fase inicial, em que o regime comunista pareceu privilegiar suprimir más notícias, acabou a colocar um polícia em cada porta para rapidamente conter surtos e a tirar o máximo partido da capacidade de vigilância e coerção de um regime autoritário eficiente. Claro que mesmo na Ásia há exceções, por exemplo a Índia tem enfrentado grandes dificuldades. Mas também há casos de sucesso em países democráticos como Taiwan ou a Coreia do Sul. Esse relativo sucesso de algumas democracias asiáticas parece resultar da eficácia da resposta dos Estados, combinando meios inovadores, uma grande capacidade de planeamento e coordenação, uma forte cooperação com o setor privado e a vantagem de lições bem aprendidas de surtos semelhantes relativamente recentes. Mas o relativo sucesso, sanitário e económico destas democracias asiáticas também não seria possível sem uma grande disciplina dos seus cidadãos, por exemplo no uso da máscara, na aceitação de mecanismos de controlo estatais dos seus movimentos, ou no cumprimento da quarentena em lugares designados. Uma realidade muito diferente dos meus passeios higiénicos onde passei o tempo a cruzar-me com pessoas de todas as idades, que aparentemente achavam que ainda não é altura certa para usar máscara. Aqui, talvez devêssemos ser mais humildes e aprender com as democracias asiáticas. Ou, então, assumir que estamos, como europeus, dispostos a pagar um custo mais elevado por uma maior liberdade pessoal em tempos de pandemia.

Há certamente críticas legítimas a fazer ao desempenho dos Estados europeus, nomeadamente a Portugal. Será fundamental fazer análises mais aprofundadas e comparadas, que permitam retirar lições para melhorar o desempenho no combate a futuras emergências complexas. Quem foi dizendo que devíamos ter adotado maiores restrições, nomeadamente durante as festas natalícias, sente-se legitimado para criticar a opção seguida. Eu próprio defendi, que antes do período natalício devíamos provavelmente seguir o modelo que então via, por exemplo, no País de Gales, de fechar tudo por um par de semanas e depois reabrir gradualmente, voltando a fechar se necessário. Mas também devo confessar que foi importante para a minha saúde mental, com todos os cuidados e todos os testes, reunir no Natal com alguma, pouca, família. E sabemos que Portugal não tem o orçamento de uma Alemanha para atenuar os custos económicos destas opções. Sobretudo os Portugueses, como os demais Europeus, podem criticar, podem sugerir alternativas, pois vivemos em Estados democráticos em tempos de emergência. Acabámos, aliás, de realizar uma eleição em que foi reeleito com ampla maioria um Presidente – Marcelo Rebelo de Sousa – que esteve disposto a assumir os custos e incertezas da gestão da pandemia. Mas os Europeus, e os Portugueses, devem também saber que é ilusório pensar que o controlo do vírus será bem-sucedido sem um enorme esforço de todos e sem tomarmos algumas opções difíceis.

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As crianças europeias devem aprender a lidar com crises

A Europa fez um esforço por manter o ensino presencial, por exemplo, em contraste com os EUA. Percebo a opção. Mas a este respeito, como pai de uma aluna matriculada numa escola pública, devo dar conta do meu espanto com a ideia de que esta última – por muito meritório que seja o esforço dos que lá trabalham numa situação de risco – são uma espécie de oásis perfeito que garante que as crianças ficarão a salvo do impacto da pandemia. Este jornal tem um grande especialista no assunto, mas atrevo-me a arriscar que me parece evidente que as crianças, como os pais, serão inevitavelmente afetados pela pandemia. Deve procurar dar-se alguma resposta ao impacto desigual da pandemia, certamente, e sem nivelar por baixo. Porém, a procura de um oásis onde as crianças estejam a salvo parece-me típico de uma mentalidade, lamentavelmente com peso crescente no Ocidente, que promove a ilusão de uma sociedade de risco zero e de felicidade absoluta (ou será wellness).  As crianças europeias já vivem em sociedades muito resguardadas, será bom que aprendam, com ajuda da família e da escola a lidar com uma crise. Isso será certamente uma lição muito mais útil para o seu futuro como adultos, num mundo cada vez mais competitivo, do que alguma perda nas quantidades monstruosas de matéria previstas nos seus programas educativos habituais.

Fechar Fronteiras Já

Para não me resguardar em comentários genéricos,deixo ainda uma sugestão concreta: a do fechamento total das fronteiras para passageiros, desejavelmente por acordo de todos os países no seio da UE. A alternativa, em vigor, de exigir testes negativos a quem chega e fechos parciais, parece-me arriscada num mundo globalizado face ao surgimento de novas variantes do vírus de comportamento ainda desconhecido e potencialmente mais contagiosas e mais letais. Para os mais preocupados com o politicamente correto, quero deixar claro que isto nada tem de xenofobia. Não se trata de um receio irracional de quem vem de fora. Trata-se de reconhecer que a história mostra que o remédio mais eficaz na contenção de uma pandemia é a limitação do contágio pela limitação da circulação das pessoas. Quando se obriga os nacionais a ficar fechados em casa, fechar temporariamente fronteiras é uma resposta perfeitamente racional a uma situação de risco extremo. Mesmo que, por si só, não seja suficiente. Onde a Europa e os EUA poderiam recuperar credibilidade é no campo das vacinas, beneficiando da sua enorme capacidade científica, mas isso não parece seguro.

Uma nova fase na corrida pela vacinação

Estamos em plena guerra das vacinas, algo tão previsível que até eu não hesitei em prevê-la. Era evidente que seria um grande desafio descobrir rapidamente vacinas eficazes. Na verdade, é um sucesso nunca visto na história das pandemias já haver várias vacinas credíveis. Mas isso comporta alguns desafios. Estamos agora sobretudo confrontados com o desafio de produzir biliões de doses de vacinas e garantir a sua distribuição equitativa, segura e eficaz. Isso seria sempre um desafio colossal. Em todas estas fases, os Estados, e no caso da Europa, também a Comissão Europeia, tiveram de assumir riscos. Será fácil, depois de se perceber qual foi a melhor vacina – em termos de eficácia, custo, capacidade de resposta –, apontar falhas. Mas a opção mais racional era realmente apostar num pacote diversificado de vacinas. E era natural confiar-se em acordos com centros de investigação e empresas ocidentais reconhecidos e habituados a cumprir pelo menos alguns dos critérios habitualmente seguidos no Ocidente a este respeito. Algum eurocentrismo era natural.

Na administração das vacinas há uma clara vantagem para Estados muito ricos com populações muito pequenas. De tal forma que há jornais de referência que preferem na sua análise da vacinação per capita distinguir micro-Estados com menos de 100 mil habitantes, dos demais. Não espanta que os Emirados Árabes Unidos ou Israel apareçam no topo da tabela. Além de populações relativamente reduzidas, têm Forças Armadas muito bem apetrechadas e organizadas e estiveram dispostos a pagar cinco ou seis vezes mais pelas vacinas do que os países europeus. Apesar disso, os países ocidentais não se estão a sair assim tão mal. É assim no caso da Grã-Bretanha (em terceiro lugar) ou os EUA (em quinto lugar), que podem recuperar algum do crédito internacional perdido perante uma gestão até aqui muito criticada da pandemia. No caso dos países da UE, muitos deles, inclusive Portugal, estão acima da China ou da Rússia, quase todos na primeira vintena ou trintena dos países em termos de vacinação per capita a nível global.

De facto, a UE fez o possível para garantir que, pelo menos no seio da Europa, o esforço de aquisição de vacinas fosse coordenado. O que garantiu uma eficácia e um poder negocial que, manifestamente, um país como Portugal não teria por si só numa guerra global pelas vacinas. Apesar da maioria dos países europeus não se saírem, objetivamente, assim tão mal nesta fase inicial da corrida global pela vacinação, percebo que é difícil manter a calma. É normal querermos ser vacinados o mais cedo possível para podermos regressar ao luxo da nossa vida habitual. E parece ser verdade, com base na informação disponível, que a UE terá descurado, infelizmente, alguma coisa no investimento na fase da produção de vacinas. Terá investido na investigação ao mesmo nível que os já referidos EUA e a Grã-Bretanha, mas sete vezes menos no apoio às farmacêuticas para produzirem novas vacinas. Aqui temo que uma tradição europeia de teorias da conspiração relativamente às farmacêuticas, de preconceitos contra ajudas estatais, eventualmente de alguns negócios duvidosos no passado, tenham impedido uma aposta mais decisiva e acertada. A minha sugestão é que, mais do que processos em tribunal, é fundamental a UE e os Estados trabalharem com as farmacêuticas para resolver o problema na medida do possível. Estamos numa corrida contra o tempo, estamos sobretudo numa corrida contra novas variantes.

Termino, dizendo que evidentemente não seria razoável pedir ao Ocidente para resolver os problemas do mundo neste campo. Isso seria, desde logo, de um terrível eurocentrismo. O que não será impedimento para as críticas dos anti-ocidentalistas do costume. É evidente que, nomeadamente, a China e a Rússia, que tanto criticam o Ocidente e reclamaram grandes avanços neste campo, também deverão contribuir para este esforço global. É evidente que a responsabilidade primeira é de cada Estado: a soberania nacional, tão reclamada contra alegadas intrusões ocidentais, não é só para as boas ocasiões. Mas independentemente de tudo isto, seria bom para a influência e prestígio do Ocidente ter um papel positivo e visível no esforço global de vacinação. Sobretudo, quanto mais tempo tivermos grandes áreas do mundo sem imunidade face à Covid-19, mais espaço daremos a que surjam novas variantes – como sucedeu já na Inglaterra, no Brasil, na África do Sul – com um enorme custo potencial em vidas e em crescimento económico para todos.

A principal fronteira no combate a uma pandemia como a da Covid-19 é realmente a linha divisória entre a humanidade e o vírus. Dizer que todos temos de fazer a nossa parte, que estamos todos, em última análise, no mesmo barco face a uma epidemia global, não é humanitarismo utópico, é realismo.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

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