A saúde mental é, cada vez mais, um foco na nossa sociedade, o que demonstra evolução. O tema tem tanto de fascinante como de complexo e encontra-se cheio de diferentes faces, tal como um caleidoscópio.

Hoje tenho a oportunidade de mostrar uma das faces pouco representadas:  a que está do outro lado – o de quem responde ao pedido de ajuda.

Quando falamos de suicídio sabemos que não é um ato simples de um momento só, como se “agora estamos e agora deixamos de estar”. É o culminar de um processo que pode durar semanas, meses, anos, fruto de muitos sentimentos de angústia e, muitas vezes, doença psiquiátrica prolongada, como a depressão.

Este processo evolutivo, embora varie de acordo com a personalidade de cada um, apresenta sintomas e sinais de alerta que são denominadores comuns. Muitas vezes houve drásticas mudanças de comportamento (como largar hobbies), de humor (tristeza, irritabilidade…), conversas sobre suicídio e até ameaças sobre o mesmo, despedidas como se não voltasse a ver novamente as pessoas, faltas ao trabalho ou à escola. Por vezes até aumento no consumo de bebidas alcoólicas ou drogas. Quando todos estes possíveis sinais de alerta falham e a pessoa consegue cometer este ato, o que há depois?!

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Somos ensinados que quando existe uma emergência médica devemos ligar 112. Este pedido de ajuda em modo telefónico está conectado a um sistema que tria a ajuda humana e de equipamentos necessária para cada situação. O suicídio é um destes tipos de chamada que normalmente ativa equipas de socorro compostas por ambulâncias com tripulantes, viatura médica de emergência e reanimação (VMER) com médico e enfermeiro e, muitas vezes, agentes de policia.

Sou médica com competência em emergência  e estou treinada para lidar com situações de emergência médica imprevisíveis. O lema é “prepara-te para o pior, esperando o melhor”. A ir para uma saída destas, sou naturalmente a médica sentada no lugar do pendura da VMER e vou a pensar em todos os cenários possíveis e imaginários e a diferente forma de atuar neles.

Importa muito a idade da vitima. Situações com crianças e jovens têm sempre um impacto mental para as equipas de socorro que é bem diferente de quando se trata de adultos. Custa pensar que um jovem queira por fim ao seu bem mais precioso, mas sabemos que pode derivar de cyberbulling, redes sociais ou outras realidades bem comuns em 2024. Acredito que temos que falar cada vez mais nisto para acontecer menos. Munir os nossos jovens de conhecimento destes casos e de amor próprio para aprenderem a lidar da melhor forma possível caso sejam envolvidos num episódio destes.

A forma como foi cometido o ato também faz diferença. Lembro-me, na minha formação de VMER, de a psicóloga formadora dizer algo que trouxe e pratico no meu dia a dia: “Evitem estímulos.” Significa que se não vou fazer diferença clinica na vida daquela pessoa, então também não vale a pena ficar a olhar e a interiorizar, criar imagens de uma cena que depois terá mais impacto psicológico em mim. Assim, evito estímulos sempre que posso.

Chegados ao local, existe sempre alguém que nos vem chamar de forma aflitiva para nos indicar onde está a vitima. Normalmente quem a encontrou vai precisar de ajuda psicológica. Mesmo que não tivesse relação de afeto com a pessoa, basta saber que é outro ser humano que lá está, para termos empatia e ficarmos impactados com este tema. Aliás, pode-se considerar esta pessoa também vitima da situação, por a ter vivido, e por isso é necessário estar atento à forma como irá encarar a vida após este momento.

Nesta altura, embora queira falar com quem me está a indicar a situação, já só quero saber há quanto tempo decorreu, pois ainda tenho esperanças de poder vir a fazer algo que a reverta. É por isso que gosto deste trabalho: porque por vezes conseguimos. Muitas vezes quem pede ajuda pensa que já não há nada a fazer, que estamos perante um ato consumado, porém nem sempre é esse o desfecho.

O pior cenário é quando chegamos e sabemos que, pelas circunstâncias óbvias, já não há nada a fazer. Aí só posso “aceitar aquilo que não posso modificar”, que pode parecer fácil mas torna-se mais difícil do que tentar reanimar alguém. Custa sempre presenciar esta situação, seja qual for a razão que a motivou. Não existe o que muitos pensam de “é só trabalho” ou “começar a ficar frio e sem sentimentos” em relação a isto. Ali está alguém cujo sistema falhou, os sinais de alerta não foram compreendidos e ninguém conseguiu ajudar.

Depois de me aperceber que nada mais clinico da minha parte há a fazer, está na hora de ir contactar as autoridades locais e dar a noticia aos familiares, vizinhos, pessoas próximas…  Esta parte é extremamente difícil. O choro, os gritos do “porquê”, os agradecimentos à equipa por tudo o que se tentou fazer e, de seguida, o abraço. Não sei bem quantos abraços já dei neste contexto, mas em todos eles senti a dor de quem estava nos meus braços.

Quando a situação é de risco psicológico para quem fica, chamamos a equipa de psicólogos ao local e muitas vezes eles até nos ajudam a dar a noticia, se tal for necessário.

E nós? Nós seguimos. Carregamos no “8” do rádio, que significa que estamos disponíveis para salvar vidas, que é para isso que estamos a trabalhar. É nas vidas salvas que nos focamos e são elas que nos dão “alegria e alento” neste trabalho. Em equipa, enquanto voltamos no carro para a base, vamos muitas vezes a falar do sucedido. Fazemos uma retrospetiva de todos os passos e vemos onde poderíamos ter sido melhores. É importante este apoio entre todos, muitas destas situações acabam por nos ser muito difíceis de lidar, de encaixar. Se mesmo assim sentirmos que precisamos de ajuda, a mesma equipa de psicólogos que está disponível para as famílias, está disponível para nós. Eu já recorri a este recurso quando precisei.

Até porque, quando termino o meu turno e volto para casa, não quero levar estas histórias comigo. Não as comento, não as partilho dentro do lar. É como se eu não quisesse que elas entrassem no meu porto seguro e invadissem este meu lado mais pessoal e familiar. Embora me recorde de quase todas as situações, tento retirar delas ensinamentos – para que, se voltar a estar em casos semelhantes, possa atuar de forma melhor, mais eficaz e rápida.

Estou a completar nove anos deste tipo de trabalho e não me arrependo de um único dia que lá tenha passado. Sei que nem sempre consegui. Porém, sei que houve momentos em que fiz a diferença pela positiva e por isso vale sempre a pena ir trabalhar amanhã.

Ana Isabel Pedroso é médica especialista em Medicina Interna e Medicina Intensiva, com competência em Emergência. É autora da página Dokinni nas redes sociais, onde aborda vários temas de saúde, do livro Para Além do Medo [ed. Zero a Oito] e da TEDxTalk homónima.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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