Lembro-me do dia em que uma amiga me ligou, chorando, para me contar que tinha ido à rua com a sua filha de dois anos. Chorava porque ficou perplexa com a naturalidade com a qual a menina lidou com a necessidade de não tirar a máscara durante o percurso e com a forma como ela estendia o próprio bracinho de cada vez que a mãe pegava o álcool-gel na bolsa para desinfetar as mãos, sabendo que também deveria desinfetar as suas.

Demorei um pouco para entender o porquê do choro e a minha amiga disse, simplesmente “não foi essa vida que imaginei para ela quando decidi ter um filho”. Acredito que todos nós, em alguma medida, sintamos a mesma coisa em relação às crianças que nos cercam. Nenhum de nós planeou o homeschooling, nenhum de nós planeou tantas horas em frente a computadores, tablets e telefones, nenhum de nós planeou que eles dissessem palavras como “quarentena”, “lockdown” e “isolamento” desde tão cedo.

Olhamos para as nossas crianças, com vidas tão condicionadas pela pandemia. Não reconhecem a própria escola. Não brincam como sabiam brincar. Não frequentam as casas que outrora eram parte da rotina. Inevitavelmente imersos no Youtube, na Netflix, no TikTok, no Among Us, no Roblox. Como exigir que eles deixem esse universo, quando esse acabou sendo o seu único universo possível durante tantos meses?

Nós não sabemos o que vai acontecer. Não sabemos se resgataremos, em algum momento, a vida previamente conhecida. Não sabemos se, em algum momento, deixaremos de ter máscaras nas nossas bolsas. Não sabemos se as escolas voltarão a ser as escolas que conhecíamos, com crianças dividindo seus lanches, interagindo fisicamente sem medo e sem restrições. Não sabemos.

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E exatamente por não saber, não podemos nos pautar nessas expectativas futuras. Como bem disse a escritora Martha Medeiros, “estamos encurralados num presente perpétuo”, sem poder condicionar as nossas expectativas em qualquer espécie de resgate. O que dizer às crianças quando nós, adultos, não sabemos absolutamente nada?

Tudo o que sabemos é que eles mudaram. Aprenderam a amar os avós por vídeo. Aprenderam a brincar à distância. Aprenderam a utilizar aplicativos, ferramentas de busca, jogos online que nunca estiveram nos nossos planos. O que dizer agora? Eles já perderam a boa e velha escola. Eles já perderam os abraços destemidos. Eles já perderam a distância em relação aos conceitos de morte, de medo, de luto. Iremos berrar que também vai acabar a vida online?

Tantos pais se lamentam, dizendo (ou deveria dizer “acusando”?) “ele não desgruda do telefone, computador, do tablet”. Sim, é horrível. Mas nós também estávamos acuados. O home office, os prazos, a exaustão. Não deu para controlar tudo. Nunca dá, mas dessa vez foi pior. Vamos responsabilizar as crianças? Vamos culpabilizar-nos ? Será que há um culpado? Enfim. Tentemos jogar o jogo da memória. Tentemos ir à praça de máscara. Tentemos jogar bola dentro de casa. Mas a vida das nossas crianças já está online. É um caminho sem volta. Nenhum de nós sabe bem o que fazer em relação a isso. Mas culpabilizar as crianças é uma crueldade sem tamanho.