Porque estão os Advogados revoltados com as propostas de alteração legislativa discutidas em 19 de Julho de 2023 na Assembleia da República?

O poder político irá vedar aos cidadãos o acesso ao Direito qualificado e ainda controlar internamente todas as Ordens Profissionais, com o falso argumento de que está a cumprir uma directiva europeia.

Fala-se, mas ainda pouco, sobre as alterações ao Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.) e respectivas consequências na sua Ordem como Associação pública profissional cuja Lei de criação lhe conferiu a especial missão de garante da defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Os advogados são os cidadãos que melhor entendem a sua importância na pacificação da sociedade através do exercício da advocacia no estrito cumprimento dos seus deveres deontológicos.

O Advogado só servirá a justiça contribuindo para o cumprimento das normas jurídicas, interpretadas à luz da unidade do sistema jurídico, fomentando a ordem e a paz social, se cumprir os seus deveres estatutários. Certamente não contaremos com a opinião pública em geral para entender o alcance e importância desta missão e infelizmente, deixámos de contar com o Estado que, através do seu actual Governo munido de maioria absoluta na Assembleia da República, apresenta propostas de alterações legislativas inaceitáveis.

Todos aqueles que quiserem exercer a advocacia estão obrigados a deveres deontológicos iguais aos deveres dos Deuses, exercendo o dever Ser, ética e moralmente perfeito, tal como é exigido à magistratura. Cumpri-lo deve ser motivo de orgulho.

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O Advogado, tal como os outros profissionais, depende de saúde, mas não tem qualquer protecção ou apoio social que não o do Serviço Nacional de Saúde, no estado em que está e enquanto o houver. Ao contrário de outros tempos de boa gestão da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (C.P.A.S.), o Advogado, não tem garantida uma reforma que lhe garanta a sobrevivência na velhice em condições dignas.

A par desta realidade, a advocacia tem vindo progressivamente a ser esvaziada de competências profissionais por atribuição de poderes a variadíssimas entidades. Os notários sofreram o mesmo, quase ninguém se importou. Agora é a Ordem dos Advogados que recebe uma machadada na sua própria génese, livre e independente, determinando-se a criação de órgãos de supervisão. Como se isso não bastasse, propõe-se que os seus órgãos disciplinares sejam maioritariamente ocupados por pessoas externas à advocacia, abrindo-se portas à perda da garantia da sua total independência e ainda, como se isso não fosse suficientemente grave, aproveita-se para a esvaziar de essência o conteúdo da profissão com as alterações à Lei nº49/2004 de 24 de Agosto. E isto é ainda mais grave.

Pouco se fala da proposta de alteração a esta lei, também conhecida como Lei dos Actos próprios ou Lei da Procuradoria Ilícita, encapotada que ficou pela extensão da proposta de alteração a todos os Estatutos das Ordens Profissionais.

Pasme-se que, com uma palavra, a palavra “exclusivos” ( v. arts. 1º nº1, 6º nº1 e 7º nº1 al. a) e b)) da referida proposta, se esvazia toda a protecção que esta lei visava: o princípio da confiança dos cidadãos, associado ao princípio da segurança jurídica, este ínsito ao princípio do Estado de Direito consagrado no art. 2.º da nossa Lei Fundamental, a Constituição da República Portuguesa (C.R.P.).

Os “actos próprios dos advogados” passam a ser os “actos próprios exclusivos dos advogados”. Fica esvaziado o anterior sentido da palavra “próprios” que encerrava em si mesma o conceito de exclusividade, sob pena de responsabilidade criminal de quem praticasse esses actos. Pretende-se que esses actos possam ser praticados por muitos “habilitados” e não por poucos “qualificados”. Pode daqui antever-se que o sistema de acesso ao Direito depressa passará a ser apenas o sistema de Acesso aos Tribunais, isto porque, como já se vem suspeitando, o acesso ao Direito obviamente passará, no próximo passo legislativo, a deixar de garantir consultas e aconselhamento com um advogado, atribuindo a outras entidades, que não a Ordem do Advogados, a gestão deste sistema, o que poderá ser um negócio de milhões entregue a amigos privados, com choruda remuneração do Estado.

E o que propôs o Governo agora, concretamente com esta alteração à referida Lei da procuradoria ilícita? Que os advogados podem fazer tudo o que faziam antes, mas a elaboração de contratos, a negociação tendente à cobrança de créditos e, pasme-se, a consulta jurídica, deixam de ser actos exclusivos destes para passarem a poder ser realizados por pessoas não inscritas na Ordem dos Advogados, nem sujeitas aos deveres deontológicos dos Deuses, por ora a saber: os licenciados em Direito (os quais deverão passar a ter seguro obrigatório de responsabilidade civil), as entidades da administração directa ou indirecta do Estado, as regiões autónomas e demais pessoas colectivas públicas, em matérias incluídas no âmbito das respectivas competências; os notários, os agentes de execução (muitos destes sem qualquer habilitação de licenciatura), e ainda, como se fossem já poucas, as pessoas colectivas de direito privado que prestem serviços jurídicos como actividade principal ou acessória, incluindo as sociedades comerciais, desde que o façam com licenciados em direito em regime de subordinação ou exclusividade! Em resumo, por pessoas de facto que trabalharão ao serviço de interesses próprios de entidades públicas e privadas, sem a especialização e sem a qualificação profissional exigida aos advogados.

E isto não redunda ainda em concorrência desleal para todos os advogados? Aqueles que nem publicidade de consultas podem fazer? Que têm de suportar o custo de um escritório? Pagar quotas e C.P.A.S.? Assumir responsabilidade disciplinar? E qual será o valor das quotas se se prevê que passam a ser remuneradas entidades que virão ocupar cargos em órgãos de supervisão e disciplina da Ordem? Os advogados ainda vão ter de sustentar, com aumento de quotas, as remunerações de estranhos à advocacia, quando nunca o fizeram para os advogados que exerciam funções na Ordem cuja remuneração foi sempre proibida pelo E.O.A.?

São apenas quatro alíneas naquele diploma, mas com demasiadas pessoas e entidades a poderem elaborar todo e qualquer contrato, prestar consulta jurídica (leia-se aconselhamento e acompanhamento extrajudicial) e a negociar cobrança de créditos. Não faz mal, dirão uns, a lei obriga estas entidades à imparcialidade, ao sigilo e a ter um controle interno de detecção de conflito de interesses! Que interesses? Uma sociedade comercial não tem, por natureza e fim ao lucro, conflito de interesses com o consumidor cliente? Um Município, no âmbito das suas competências, não tem conflito de interesses com o Munícipe? A Autoridade Tributária, no âmbito das suas competências, não tem conflito de interesses com os contribuintes? Uma mediadora imobiliária, para acautelar a sua comissão, não tem conflito de interesses com o vendedor e o comprador dum imóvel? Todos sabem a resposta.

A abertura a mercados de trabalho não pode ser generalizada em profissões especializadas e reguladas por critérios e disciplina que as afastam das regras gerais da concorrência de mercado. Estas profissões, por mais que tentem dizer o contrário, não são um mero “mercado”: os médicos têm o especial dever de defender a saúde do cidadão mesmo contra as leis da oferta e da procura, os advogados têm o especial dever de servir a Justiça, contribuir para a ordem e a paz social, ainda que contra todas a regras do mercado. A qualificação profissional na prestação de consulta jurídica e acompanhamento extrajudicial é garantia de segurança jurídica que o Estado tem o dever constitucional de assegurar com vista a alcançar uma sociedade mais justa.

Não vá ao médico, nem ao advogado, use placebos, incentiva o Estado com esta proposta de lei. Não consulte nem um solicitador, pois um agente de execução serve, mesmo que não tenha qualquer licenciatura, nem esteja sujeito a qualquer controle interno de conflito de interesses. Qualquer licenciado em Direito, mesmo os que estão legalmente impedidos de exercer a advocacia ou dela foram expulsos ou julgados inidóneos para o exercício da profissão, poderão dar-lhe consulta e acompanhamento jurídico. É o que o que o Governo levianamente propõe.

Sobrará para a advocacia a exclusividade do mandato forense para causas de valor superior a 5.000,00€? Sim, isso mantém-se, diz a proposta de lei, mas com a excepção das pessoas legalmente autorizadas, que hoje são umas (ex: juristas das entidades públicas em administrativo, contabilistas em tributário) para depressa, já se antevê, passarem a ser mais, à semelhança do ignobilmente defendido para integração doutros profissionais no exercício da magistratura.

Passo a passo, combate-se a sobrevivência da advocacia já sufocada em custos. A montante, através das alterações ao E.O.A., propõe-se também controlar quem pode aceder ao estágio e desabrigar a possibilidade de se ter um advogado em prática isolada como patrono. Ninguém vai aceitar dar o estágio tradicional que visa ensinar, ninguém vai pagar para ensinar.

E isto tudo, digo eu com a leviandade própria de falta de senso e saber, assegurando “a legitimidade da Ordem dos Advogados para intentar acções de responsabilidade civil, tendo em vista o ressarcimento de danos decorrentes da lesão dos interesses públicos que lhes cumpre, nos termos dos respectivos estatutos, assegurar e defender” ( art. 11º, nº 2 da proposta de alteração ao diploma sob análise)!. O próprio Estado demite-se da protecção preventiva dos interesses públicos, nomeadamente da confiança e da segurança jurídica, para permitir à Ordem que os proteja depois do dano sofrido! Se isto não é total irresponsabilidade moral e verdadeira ilicitude de conduta legislativa, o que será?

É tarefa fundamental do Estado garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático prevê o art. 9º al. b) da C.R.P.. Com esta proposta de lei, o Estado não está a cumprir esse dever. O interesse público fundamental a defender é a confiança e segurança jurídica do cidadão na única vertente preventiva, princípios fundamentais de um Estado de Direito que se quer Democrático. Já os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos ( art. 60º nº1 da CRP). O Estado demite-se de garantir o primeiro destes direitos com esta proposta de alteração legislativa, não é demais repeti-lo, porque parece não ser óbvio.

A liberdade de acesso à profissão tem de ser entendida no sentido de qualquer pessoa se poder formar nessa profissão, e não poder distribuir o seu conteúdo para que qualquer pessoa ou entidade a possa exercer com manifesto prejuízo para a confiança e segurança jurídica dos cidadãos.

E dar dois dias úteis à Ordem dos Advogados para se pronunciar sobre a extensa proposta de alterações legislativas que a esta e a todos os cidadãos dizem respeito equivale a recusar ouvir esta entidade em clara violação ao disposto na al. j) do art.3º do E.O.A. A meu ver, outro acto do Estado que não se fica pelo desrespeito, sendo objetivamente ilícito, em manifesto abuso do seu ius imperii.

Tornar a profissão esvaziada dos seus fundamentais e históricos actos é torná-la tão pouco atractiva em termos de rendimentos, que ninguém a quererá exercer, e assim morrerá a advocacia livre e independente e até a medicina. Não vá ao médico nem ao advogado, use placebos, incentiva o Estado. Se sofrer danos, as Ordens têm legitimidade para agir!

E, dirão, mas isso de andarem outros, como contabilistas, a fazer contratos, a fazer cobranças difíceis, na prática já podia acontecer. Acontecia sim, sempre com prejuízo do cidadão. Toda a norma jurídica é essencialmente violável, mas, para o prevenir, o legislador punia criminalmente os infractores que prestassem serviços jurídicos sem qualificação, porque o Estado considerava a advocacia essencial à administração da justiça, incluindo no acesso do cidadão à informação jurídica competente e ao acompanhamento extrajudicial e judicial para garantia da defesa dos seus direitos liberdades e garantias. Note-se que, em corolário dessa retirada de conteúdo da profissão, é ainda proposta a inadmissível revogação do disposto no nº 9 do artigo 1º da Lei nº49/2004 de 24 de Agosto “9 – São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. “

Revogar o direito a fazer-se acompanhar por advogado não é um grave sinal de afastamento da democracia?!

A génese da Ordem dos Advogados impõe a todos os advogados a independência e a defesa dos princípios do Estado de Direito Democrático. A nossa forma de luta contra a falta de qualificação dos profissionais ao serviço dos cidadãos, promovida agora pelo Estado, terá de passar, se a proposta de alteração for aprovada, pelo meio que impomos aos cidadãos: a via legal, em defesa dos nossos interesses de liberdade e independência sim, mas principalmente em defesa da liberdade dos cidadãos.

Impõe-se que se combata este ataque aos direitos dos cidadãos sob o ponto de vista jurídico-legal: demonstrar a desconformidade da própria Lei das Associações Públicas Profissionais (L.A.P.P.) à directiva que a impõe, com vista a dela excluir necessariamente certas profissões qualificadas, em especial a Advocacia e a Medicina, incluindo por falta dos pareceres obrigatórios sobre os impactos negativos da sua cega aplicação às respectivas Ordens Profissionais, sem respeito pelo critério fundamental da proporcionalidade exigido pela Directiva, aliás também por nós constitucionalmente consagrado. E sobretudo por, no caso dos advogados como servidores da Justiça, violar a Lei de criação da Ordem dos Advogados, impedindo os seus fins. Impõe-se declarar a ilegalidade da discriminalização generalizada do acto próprio “consulta jurídica”, leia-se acompanhamento extrajudicial do cidadão perante qualquer autoridade, que deixa de ser exclusivo dos advogados.

Haverá um facto ilícito legislativo sempre que a aprovação de lei inconstitucional ou ilegal, em face da legislação em vigor nesse momento, viole direitos, liberdades e garantias ou ofenda quaisquer outros direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos. A responsabilidade por facto das leis admite-se nos nossos Tribunais sempre que haja violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para o cidadão derivados directamente das leis. É o caso com esta proposta legislativa: o Estado demite-se de acautelar a confiança e segurança jurídica aos cidadãos no acesso ao Direito, não assegurando também o direito dos consumidores à qualidade dos serviços jurídicos e o direito de ser acompanhado por advogado perante qualquer autoridade.

No uso das atribuições previstas no art. 3º als. a), b), d) e e) do E.O.A. e ao abrigo do disposto no art. 22º da C.R.P., cabe à Ordem dos Advogados defender a ilicitude da aplicabilidade das normas da L.A.P.P. à Ordem dos Advogados e à Ordem dos Médicos, sobre todas as vertentes legais possíveis, e consequentemente a eventual demanda, até à última instância, com fundamento na responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função político legislativa, quer em futuras alterações à lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais, quer com a recente proposta de alteração à Lei dos Actos Próprios, tudo com vista a exigir do Estado o cumprimento da garantia dos direitos dos cidadãos ao acesso ao Direito, à confiança e à segurança jurídica.

A liberdade de acesso à advocacia e ao exercício de actos próprios protegidos por lei de natureza penal foi e deve continuar a ser limitada por razões de ordem pública, de segurança pública, razões imperiosas de interesse público, devendo a Ordem dos Advogados assegurar que mantém a gestão do sistema de acesso ao Direito, agindo sempre em defesa do direito do cidadão à consulta jurídica técnica e ao acompanhamento extrajudicial e judicial competente, isento e independente, pelo único profissional especializado e qualificado: o Advogado. Os cidadãos, na hora em que temem ver os seus direitos atropelados, sabem bem quão fundamental é essa garantia.