Com a contagem dos votos dos círculos da emigração fica cumprido o apuramento geral dos resultados das legislativas 2022. Perante estes dados, são conhecidos todos os deputados eleitos e é agora possível fechar a análise da abstenção e contabilizar todos os votos que não foram convertidos em mandatos.

A abstenção é tema recorrente na análise de eleições legislativas. Com o aumento do número de eleitores, as legislativas de 2022 foram exceção. Assim, no passado dia 30 de janeiro, verificou-se a redução da taxa de abstenção (para 48%) e um aumento do número de eleitores – em contraciclo com a tendência registada desde 2005. Este ano fomos, portanto, poupados às costumeiras e inconsequentes afirmações de preocupação dos vários partidos. Para explorar melhor o tema, aconselho o estudo Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal, de João Cancela e Marta Vicente, que traça um diagnóstico completo para o período anterior a 2018.

De modo simplificado podemos constatar, pela análise do gráfico abaixo, que a taxa de abstenção tem vindo a subir, com exceção da eleição de 2005. Contudo, mesmo considerando que o número absoluto de votantes tem ligeira tendência de decréscimo [de aproximadamente -3%], constata-se que o crescimento da taxa de abstenção tem sido mais influenciado pelo aumento do número de inscritos do que pelo decréscimo de votantes efetivos. O crescimento do número de inscritos será, por sua vez, resultado de três fatores principais: (i) o aumento de portugueses em idade adulta [efeito sentido principalmente até 2002, altura em que o número de portugueses com 18 ou mais anos praticamente estabilizou]; (ii) o recenseamento automático de portadores de cartão de cidadão [com efeito após a eleição de 2009]; e (iii) o recenseamento automático de portugueses residentes no estrangeiro [um efeito registado após a eleição de 2019].

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Inscritos, votantes e taxa de abstenção: eleições legislativas após 1985 [fonte: MAI]

Com isto não se afirma que a participação eleitoral não é uma questão a ter em consideração – muito até porque a tendência de aumento da abstenção é inegável. Mobilizar a sociedade trazendo mais votantes a cada eleição deve ser um desafio constante e um esforço muito sustentado na educação. A iniciativa de simulação de legislativas na Secundária de Rio Tinto é uma boa abordagem, que vem sendo estudada e implementada um pouco por toda a Europa.

Porém, deveríamos olhar com especial atenção para eleitores com vontade de participação política e que se vêm desmobilizados. Neles se incluem os votantes que têm um processo de voto muito complexo, como é o caso dos eleitores no estrangeiro (a quem se culpa o desconhecimento). Mas incluem-se também os eleitores que têm o seu voto condicionado e cujo voto tem grande potencial de não ser convertido em mandatos (sobre os quais escrevi aqui). Note-se que em círculos menores a abstenção é tendencialmente maior.

Sobre estes últimos, analisando os dados do território nacional das últimas cinco eleições (após 2009), percebemos que em média 1 em cada 10 votos válidos depositados em urna não entram nas contas finais. Uma eleição de órgãos representativos fica em parte comprometida quando não tem em consideração o voto válido (já descontando votos branco ou nulos) de mais de 10% dos eleitores. Na eleição deste ano foram aproximadamente 670 mil votos (~12,5% do total de votos válidos) não convertidos em mandatos, excluindo os números dos círculos do estrangeiro – dados MAI e detalhes em omeuvoto.com. Em 2019 haviam sido quase 14%, correspondentes aos ~680 mil votos que foram pelo cano em território nacional – dados CNE.

Este fenómeno será tendencialmente crescente com um aumento do número de partidos (dispersando votos) e com a crescente despovoação do interior (diminuindo os círculos eleitorais). Um primeiro sinal é o facto de que, na eleição de 2022, a maioria absoluta de António Costa resulta de uma eleição em que o PS tem menos votos (2,34 milhões) que os alcançados, em 1995 e 1999, por António Guterres (2,58 e 2,39 milhões, respetivamente). Também por isto, a consciência de que o voto não será, muito provavelmente, convertido em mandatos no seu círculo constitui um incentivo à abstenção nos círculos menores.

Deveríamos com isto repensar este sistema eleitoral de modo a trazer-lhe robustez e eliminando incentivos perversos à definição de boas políticas públicas. Para isso é necessário considerar, por exemplo, um círculo de compensação que não permita que partidos com mais votação global fiquem sem representação (como o caso do CDS nesta eleição). Isto porque o problema não está no método d’Hont mas antes na dimensão de alguns círculos. A revisão do sistema eleitoral seria uma oportunidade para ajustar a dimensão e delimitação dos círculos eleitorais, tendo também em consideração, por exemplo, as dinâmicas sociais, as unidades territoriais para fins estatísticos (NUTS) e as divisões administrativas da administração pública.

Teremos que ser nós, sociedade, a trazer à agenda a abstenção e os votos não convertidos em mandatos. Ambos os temas serão, em parte, faces da mesma moeda.