Falar sobre o que faz um arquiteto é um desafio muito maior do que pensam por aí, mas vou começar pelo papel social que temos de empregar na sociedade como um todo, não como uma obrigação imposta pelas universidades e instituições, mas como um pré-requisito para a boa formação profissional. Em um momento em que muito questiona-se a necessidade de ter um arquiteto presente em projetos legais ainda temos de enfrentar as burocráticas e questionáveis regras para submissão de processos nas câmaras. Mas o que muitos não têm conhecimento é que para uma boa ordenação das cidades o arquiteto é a peça chave, nós temos a habilidade (ou deveríamos ter em nossa essência) não somente da ordenação e organização dos espaços, mas sim de cidades inteiras, e através de uma requalificação urbana, por exemplo, como é o caso da cidade de Medelín na Colômbia, atingida pela alta criminalidade em suas comunidades com conflitos armados entre 2012 e 2015, o que ocasionou a saída de muitas famílias da cidade. E que através de um projeto urbano foram criadas e desenvolvidas estratégias para a requalificação da cidade.

Dentro de um contexto social carente de serviços básicos e trazendo à tona ainda o caso de Medelín, a população local não somente enfrentava a guerra local, mas a falta dos serviços essenciais para uma boa vivência da cidade, a típica gentrificação de espaços em que somente os ricos tinham condições de viver, em contramão ao descaso de uma população que para ter seu filho na escola precisava deslocar-se alguns quilómetros para a escola mais próxima, com a requalificação da cidade e o objetivo de combater a desigualdade social o projeto promovia a integração entre cidade e serviços essenciais, como escolas, transportes acessíveis e integrados, acessibilidade e reordenação espacial e assim Medelín saiu do mapa da desigualdade e hoje é reconhecida mundialmente pelo seu urbanismo facilitador e pela arquitetura criada para os mais desfavorecidos.

Saindo um pouco do papel social do arquiteto e entrando em um assunto um tanto mais polêmico, e falo da venda de cidades, ou a gentrificação das cidades e as suas consequências no contexto socioeconómico, consequências tais como, um cidadão ter de abandonar sua cidade pela ausência de capital para lá viver. E quando falo em cidade, nosso imaginário nos leva ao encontro de uma cidade livre, de encontros e desencontros, em que podemos usá-la como cidadão e ter nosso direito social de ir e vir. Nesse ponto paremos um pouco para observar o contexto atual: alto índice de despejos, elevado crescimento populacional com a vinda de imigrantes de todo o mundo e com isso enfrentamos todos os dias dificuldades que escancaram para quem de fato é vendida a cidade; para o turista, rico e disposto a comprar somente, não para viver, ou para morar, mas sim para arrendar ou simplesmente não usar a moradia e isso vem em um pack de patologias sociais, em Portugal, por exemplo, temos altos índices de  desalojamentos de cidadãos idosos e jovens por não conseguirem pagar as rendas absurdas quase que a liquidar todo o ordenado mensal, que que os obrigando a partilhar quartos com mais outras cinco, dez pessoas por quarto e gerando cada vez mais uma cidade cansada e triste, por não ter onde morar e muitas vezes nem onde dormir, e quem diz isso não sou eu, são os dados demográficos que mostram que o número de moradores de rua em Portugal aumentou, que são pelo menos 9.604 pessoas em situação de vulnerabilidade de acordo com os dados do Enipssa com base na realidade vivida em 2021 e divulgado em meados de 2023, aumentou 117% em 4 anos, há famílias inteiras morando na estação da Gare do Oriente. É um número alarmante se repararmos que a cidade parou de crescer nos últimos 4 anos. O ordenamento das cidades estagnou e não vemos mais políticas habitacionais como há dez ou quinze anos. Estou falando de um país com pouco mais de 10milhões de habitantes que concentra sua maior população em duas cidades, Lisboa e Porto, a cidade não está crescendo para fora, está comprimindo como em um T3 com 6 beliches em cada quarto como há tantos na Martin Moniz e Arroios, a concentração de imigrantes e a falta de políticas habitacionais causam um efeito assustador como em uma panela de pressão que está cada vez mais próxima a explodir caso não levantem a válvula compressora.

Trazendo um pouco dessa responsabilidade para o nosso lado, como arquiteto, acredito que é imprescindível que tenhamos um envolvimento político cada vez maior, sei que soa estranho, mas o que tem haver política e arquitetura? No meu entendimento tem tudo, mas infelizmente vemos poucos arquitetos envolvidos diretamente com política, seja no poder, seja encabeçando projetos de lei que favoreçam o cidadão comum através de políticas sociais igualitárias, que devolvem a cidade e o direito de viver para o povo, somente faz-se arquitetura com política diretamente, é quase intrínseco.

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Tendo em consideração as políticas atuais de habitação, o que temos são pequenos e pontuais concursos de rendas acessíveis que beneficiam mais o proprietário do que o arrendatário. É preciso que mais arquitetos e urbanistas estejam interligados à política a fim de facilitar os processos de requalificação das cidades, que por sua vez é outro grande desafio da nossa profissão; o tempo que leva para um projeto ser aprovado na câmara hoje é no mínimo intrigante, para não dizer irresponsável, mas o que falta? Profissionais para avaliar em tempo hábil? Ordenados à altura, e assim ter profissionais mais dedicados ao ofício? Políticas que facilitem e simplifiquem o trâmite processual? A resposta é inerente aos anseios de muitos profissionais que lidam com pedidos todos os dias, cansativos e primitivos, estamos 2024 e as leis ainda são as dos anos 50, que precisam ser revisadas e melhoradas e não mascaradas, temos tecnologia para isso e temos profissionais qualificados.

Ainda sobre a burocrática e insalubre temática de pedidos de licenças de habitação, falando especificamente dos prazos impostos em Portugal, vemos um descaso grande nos pedidos enviados às câmaras, em que a logística é indiscutivelmente ilógica no ponto de vista dos profissionais que para além de lidar com inúmeros documentos, temos de lidar ainda com processos de entrega arcaicos da década passada, com entrega de arquivos em programas desatualizados há quase 10 anos. A ideia é de que paramos no tempo e os desenhos em sépia em papel manteiga amarelado passaram para as telas dos computadores com Windows xp, e por alí ficaram. Essas longas esperas para as licenças serem aprovadas ou revisadas fazem com que os promotores construam por vontade própria suas próprias moradias, sem qualquer estética ou sem qualquer preparo, contratando pessoas que não entendem das leis e que constroem como se construíam há 30 anos. Após isso acontecer o que resta é demolir, e sim os custos de demolição são altos e Isso é um problema tanto para a câmara, que por sua vez precisa legalizar as obras feitas sem autorização prévia, como o proprietário que iniciou a obra por que precisava da sua casa e a câmara não liberou a licença em 3 meses, mas em 2 anos, e como isso se resolveria? Pagando 2 anos de renda? A câmara iria ressarcir por esse tempo de espera? Imagino que a resposta dessa pergunta todos nós já sabemos. E o que gera é um inevitável descontentamento por parte dos profissionais de ateliês do país, para não falar a falta de demanda para emissões de licenças, bem como construções que desconfiguram as cidades, sem nenhum cuidado, sem nenhum rigor técnico.

Nosso ofício vai além dos desenhos técnicos ou daqueles esquiços à mão levantada que muitas vezes levam nossas noites e nossa disposição, fazemos arquitetura para a vida, para a melhoria de vida, contratar um arquiteto deixou de ser luxo na década de 70 com o alto crescimento populacional e tornou-se necessidade não só dos órgão públicos, mas do cidadão comum, que por sua vez, não sabe ao certo para que serve um arquiteto, e não falo da pessoa formada, que teve acesso ao estudo e que contratam os profissionais para nos chamar de “o meu arquiteto”, mas sim de famílias em zonas de alta densidade demográfica e baixa infraestrutura e rendimentos, daqueles cidadãos que sonham em ter sua casa remodelada, mas que não sabem por onde começar. É para esses que também deveríamos nos disponibilizar, e não de forma explícita, deveriam as câmaras disponibilizar sempre profissionais qualificados para atender aos menos favorecidos sem custos para os mesmos, repassando os custos para o estado, assim o controle de remodelações e construções ilegais passariam a ser de responsabilidade de todos, sobretudo das câmaras como é atualmente.

Em meio a tudo isso temos os constrangimentos políticos e pedagógicos na nossa formação acadêmica, cada vez mais desfavorecida, carecida de reconhecimento e preparo, bem como os constrangimentos na hora de validar diplomas estrangeiros. É notório o êxodo de portugueses e não só, para outros países em que são reconhecidos financeiramente, fala-se muito que português não gosta de trabalhar, mas o que não gostam mesmo é de receber o que recebem e trabalhar com cargas horárias exaustivas para no final do mês mal conseguir pagar a renda. Há falta de políticas também nesse setor, ora, se trabalhamos bem e cumprimos com rigor o que manda o figurino, qual o problema em querer ser reconhecido e ganhar tal e qual ao trabalho que exerço? Nesse ponto, consigo atingir não só profissionais de arquitetura, mas todas as profissões em Portugal, também sei que falar sobre ordenados de profissões é algo bem arriscado e paira sob um quadro escuro, mas o que sei é que em sua generalidade somos mal pagos para a responsabilidade que temos de exercer na sociedade como um todo. É legítimo uma reflexão sobre como somos desvalorizados como profissionais nesse país e não digo isso como uma autocritica, eu por uma grande felicidade não tenho do que reclamar, fui sempre bem recebido e trabalho em um ambiente muito agradável. Mas eu sei que essa não é a realidade de muitos dos profissionais que estão no mercado.

Eu poderia concluir falando o que de fato fazemos como profissionais, desde criação de mobiliário com design refinado, à construção de casas e edifícios a cidades inteiras, mas afinal, um arquiteto não vive apenas de seus desenhos, vivemos de anseios por reconhecimento, por acesso mais facilitado para cidadãos desfavorecidos, órgãos mais eficientes e mais ágeis na solução das licenças. Afinal, um arquiteto não vive apenas de deus desenhos, mas sim de todos os sonhos embutidos neles e em seus promotores que de acordo mútuo fazem acontecer essa profissão desafiadora e extremamente necessária na vida das pessoas.