Albarde-se o burro à vontade do dono, reza o velho ditado. E o dono, pelos vistos, está contente com a albarda.

O trimestre passado o crescimento era de 2,4%, agora desceu para 2,1%, o ritmo mais lento desde 2016? Não faz mal, mesmo assim é crescimento, o nosso primeiro-ministro celebra. E nem conta que tenhamos 14 países europeus a crescer mais do que nós, ou termos o quinto crescimento mais baixo de todo a União Europeia, pois parece ter-se perdido toda a ambição.

De resto, queixas não faltam, mas poucos lhe ligam. Há blocos operatórios parados no hospital Garcia de Orta por falta de anestesistas? A cirurgia de ambulatório está fechada há dois meses? Enfim, já é rotina. Como rotina é a notícia de que o Hospital Amadora-Sintra está a trabalhar com menos de metade dos anestesistas necessários, sendo que há apenas dois médicos por dia nas urgências. Também ali, como no São Francisco Xavier (onde as colheitas de sangue estão racionadas), ou no São João do Porto (local da ala pediátrica num contentor, mas onde também há uma máquina para tratar cancro sem uso há meses por demora nos pagamentos), como no Santa Maria de Lisboa que já uma vez referi quando falei deste clima de tanto faz, logo se vê, que se lixe, que as denúncias destas carências não parecem incomodar ninguém.

É mesmo isso: albarde-se o burro à vontade do dono. E o dono, pelos vistos, prefere olhar para o lado. Disfarçar. Esconder o lixo debaixo do tapete. Os hospitais estão assim, sempre à espera de milagres quotidianos que evitem a ruptura, mas mesmo estando assim, sem prestar bom serviço, cheios de cativações, a situação financeira dos Hospitais EPE degradou-se: 2017 foi o seu pior ano de sempre, no que diz respeito a resultados, que então registaram 300 milhões de euros de EBITDA negativo.

E depois é aquela altura em que não sabemos se é o dono se é o burro que tem mais manha. Nomeadamente na arte do disfarce e de fazer outros pagar por políticas que se anunciam como grandes dádivas. Passes sociais com descontos para estudantes? Quem pode estar em desacordo? Ninguém. Dê-se pois o desconto, as transportadoras adiantam o dinheiro, o pagamento logo se vê – e tanto “logo” que soubemos agora que nada é pago desde Janeiro deste ano. Não deve mesmo haver forma mais fácil de fazer política social – com o dinheiro dos outros, meses e meses a fio e sem lhes pedir sequer autorização prévia. É assim nos transportes e como é assim nos livros escolares: é que os livreiros também se queixam de que já pagaram às editoras os manuais escolares “gratuitos”, alguns até tiveram de se endividar, mas o pagamento não chega. Sendo que há quem passe por momentos mais difíceis, como algumas empresas de formação que acusam o Estado de não desbloquear fundos europeus há cinco anos. Só na área da protecção e socorro haverá 600 pessoas sem receber ordenados há dois ou mais meses.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Protestos? Indignações? Xeliques? Nada. E mesmo quando as condições de um serviço público se degradam ao nível do insuportável – como sucede na ligação ferroviária entre Tomar e Lisboa –, o governo só foi capaz de anunciar medidas para reforçar o número de composições depois de uma chocante reportagem televisiva da TVI.

Não é a primeira vez que, nesta coluna, me dou ao trabalho de alinhar algumas notícias que vão dando conta da degradação de serviços públicos sacrificados às cativações em nome das reposições de rendimentos dos funcionários do Estado. Não sei se será a última, mas sei que pouco parece perturbar um país que parece cada vez mais acomodado e onde fenecem as energias para contrariar um destino de crónico atraso, crescimento medíocre e preguiçosa ambição. Um país preso nos seus próprios atilhos.

Esta semana foi divulgado no Porto um estudo sobre “Assimetrias e Convergência Regional” a que Luís-Aguiar Conraria já se referiu no Observador. Dele só conheço o resumo que ele mesmo fez, onde destacava o facto de a região mais rica do país, a Área Metropolitana de Lisboa, e que se esperava fosse o motor do seu desenvolvimento, ter funcionado nos últimos anos (2008-2016) como uma espécie de pesada âncora que puxou Portugal para trás. Conraria condenava, correctamente, o facto de mesmo assim a capital continuar a funcionar como um sorvedouro de recursos, provado que está que, mesmo representando mais de um terço da riqueza do país, não ser nela que está o seu futuro.

O que Conraria não dizia, mas eu gostaria de acrescentar como hipótese explicativa, é que Lisboa tornou-se nesse lastro para o país por nela se concentrar a Administração Central do Estado e por nela também estarem as sedes das grandes empresas de bens não transacionáveis. É em Lisboa que se concentram as clientelas e é de lá que elas tiram os seus benefícios. Lisboa – que é a minha cidade, para que não fiquem dúvidas – transformou-se num imenso Terreiro do Paço, num polvo de serviços administrativos, numa nebulosa de grupos de dependentes, sendo que nela a proximidade do poder político sempre deu aos interesses enquistados uma maior capacidade reivindicativa.

Esta ecologia não pode produzir riqueza, ou a riqueza de que o país necessita, pois mais depressa vive dos recursos que sorve do resto país.

E, no entanto, não tinha de ser assim. Ou, pelo menos, não tem de continuar a ser assim. Na última década Lisboa tornou-se num grande destino turístico e um conjunto de reformas, com destaque para as leis do arrendamento, abriram caminho ao que parecia impossível: a recuperação dos seus bairros históricos, antes a cair de podres. Parecia ter-se acendido uma luz ao fundo do túnel – até que os velhos do Restelo do costume se empenharam em apagá-la.

Conta-se que Salazar nunca quis a Coca-Cola em Portugal porque o horrorizava a ideia dos camiões da multinacional a perturbarem a pacatez das nossas aldeias. Agora já não temos Salazar para nos atormentar, ninguém se incomoda com os camiões da Coca-Cola, o que não se suporta, vejam lá, é o ruído dos trolleys dos turistas nos empedrados dos nossos bairros históricos. Isso é que nos dá cabo dos nervos.

Salazar topou bem o povo português e percebeu que, depois da agitação e do susto dos anos da I República, este não se importava de ser pobrete desde que alegrete. Costa também já percebeu que uma migalha aqui, uma migalha ali, é caminho mais seguro para a reeleição do que tudo o que implique correr qualquer risco e, agora, até o avô Louçã se juntou a este clube, metendo a revolução na gaveta e propondo aos portugueses exactamente aquilo que Salazar representou: segurança.

Não surpreende assim que, nos últimos 33 meses se tenha desmantelado, no que à política de habitação diz respeito, o que levara 33 anos a construir laboriosamente, numa sucessão atabalhoada de medidas legislativas que são um verdadeiro pesadelo mas que, no fundo, mais não fazem do que responder ao secular atavismo de um povo com horror ao risco e ainda maior horror ao sucesso do vizinho.

Em condições normais um país onde o crescimento está a desacelerar e vai continuar a ser ultrapassado por parceiros europeus mais pobres devia estar a sonhar ser como os mais desenvolvidos e a discutir como é que podia alcançá-los. Em vez disso está a habituar-se a que tudo vai funcionando mal e nós apenas encolhemos os ombros, sussurramos uma blasfémia, no máximo desabafamos em família.

É por isso que tristemente constato que então albarde-se o burro à vontade do dono sendo que o dono, pelos vistos, está contente com a albarda. A vida não está mesmo fácil para quem gostaria de ver um país menos acomodado a estas águas estagnadas da Pax Costista.