1 Com a exceção dos comentadores militantes formais e informais do PS, ninguém percebe uma coisa simples na comunicação de António Costa deste sábado: perante uma situação muito mais grave do que em março/abril (mais infetados, mais internados em enfermaria e em cuidados intensivos e mais mortes) o primeiro-ministro apresentou medidas muito mais suaves. Perante a pior semana de sempre — e com projeções que garantem que as próximas três semanas serão ainda piores — o Governo ficou a meio da ponte com medidas atrasadas.

Pior: muitas daquelas medidas já foram aplicadas há várias semanas em diversos países europeus sem resultados eficazes. O que levou países como a França, Reino Unido, Espanha, Itália e Bélgica, entre outros, a avançarem na semana passada para o estado de emergência ou para confinamentos gerais ou parciais.

A incoerência e a falta de efetividade das medidas fazem lembrar aquele famoso sketch de Ricardo Araújo Pereira sobre Marcelo Rebelo de Sousa. É só trocar Marcelo por Costa. Devo ficar em casa? Sim. Mas posso sair de casa? Pode. E acontece-me alguma coisa se sair de casa? Nada! O que é que posso fazer fora de casa? Trabalhar, passear o cão, fazer desporto, ir a restaurantes, ir a espetáculos. Então o que vou fazer a casa? Dormir! O teletrabalho é obrigatório nos 121 concelhos com regras mais restritivas? É. Mas posso ir à mesma para o meu local de trabalho? Pode. Porquê? Porque ninguém controla nada.

Como diria Graça Freitas sobre o papel da Direção-Geral de Saúde, o Governo “só faz faz recomendações, cabe aos cidadãos cumprir.” Se não fosse a dependência que todos os governos têm dos impostos para financiar aumentos da despesa pública, valia a pena a Autoridade Tributária seguir a mesma política: uma obrigação tributária passava a ser apenas uma recomendação — e sem cobrança coerciva.

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Estamos atrasados e a correr atrás do prejuízo por culpa própria. E estamos a perder tempo, uma vez mais. Tal como em março, temos um primeiro-ministro titubeante, à espera que um consenso imaginário vá ter com ele. A única coisa que se salva dos últimos dias é que o Rt (número médio que cada infetado contagia) parece estar a diminuir.

2 Não, não estou a defender o confinamento geral — que apoiei em março mas que só defenderei agora perante uma situação calamitosa. Estou a falar de planeamento, antecipação e competência —  características que o Governo continua a demonstrar não ter. E acima de tudo estou a falar da ausência de  capacidade de liderança por parte de António Costa.

Liderar é mostrar o caminho — não é ficar à espera que a própria população crie um consenso com a sua ação voluntária como aconteceu em março com o estado de emergência ou recentemente com a utilização das máscaras na rua. Liderar é tomar decisões (mesmo quando são impopulares) que se guiem pela defesa do bem comum mas que acima de tudo sejam fundamentadas, claras e coerentes para serem percecionadas pela população — não é dizer uma coisa e o seu contrário ou comunicar de forma atabalhoada, como o Governo tem feito.

É incompreensível que António Costa não tenha anunciado, desde logo, que vai propor o estado de emergência ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Essa é uma medida inevitável do ponto de vista preventivo e legal. Precisamente para defender a economia e “salvar o Natal” (o novo mantra justificado da narrativa do Executivo), o Governo vai ter de colocar um travão à circulação, seja com o recolher obrigatório noturno, seja com outro tipo de medidas mais restritivas. E tal só se consegue a coberto do estado de emergência.

E a história volta a repetir-se: Costa não fez isso e Marcelo começou a mandar recados pelos jornais de que decretará tal estado de emergência com o apoio do PS e do PSD, tal como deverá confirmar esta segunda-feira em entrevista à RTP.

Acresce a tudo isto que os portugueses já começaram a confinar: a esmagadora maioria (90%) dos portugueses já não saem de casa depois das 22h, segundo dados do painel de mobilidade de uma consultora citados pelo Expresso.

Uma vez mais, o país está à frente do Governo. Enquanto António Costa pensa, hesita e não decide, os portugueses tomam as suas decisões de forma espontânea: confinam, optam pelo teletrabalho e usam máscaras na rua.

3 Há uma outra questão básica: as medidas duras deviam ter sido tomadas antes — enfatizo antes — da contaminação ser comunitária. O reforço da capacidade de rastreio ou a contratação de enfermeiros — duas das medidas anunciadas por António Costa — deveriam ter sido ter sido concretizadas em maio ou junho antes do crescimento exponencial das novas infeções para termos capacidade de quebrar as cadeias de transmissão. Enfim, deveríamos ter sido muito mais exigentes antes dos hospitais entrarem à beira da rutura, como já aconteceu com o Hospital de Santo António no Porto e noutras unidades no norte. E outros se seguirão.

Foi isso que fez a Alemanha, começando desde logo por ter um critério muito mais exigente dos que os 240 novos casos por cada 100 mil habitantes. Basta 50 infetados por cada 100 mil habitantes e em apenas 7 dias (em vez de 14 dias) para os alarmes dispararem. António Costa bem pode argumentar que se limitou a seguir a métrica do Centro Europeu de Controlo de Doenças mas ser mais exigente ainda não carece de autorização de Bruxelas.

Nada de surpreendente para um político de vistas curtas. Aliás, quando tenta ter rasgo, dá-lhe para o lado errado e à hora errada. Por exemplo, o primeiro-ministro está a deixar que a sua ministra Marta Temido faça do combate à pandemia um combate ideológico contra o setor privado da Saúde, na defesa de uma visão estatizante da sociedade. Tudo para provar que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) consegue tratar os doentes Covid e não Covid — dispensando-se assim a ajuda dos hospitais privados.

Essa demagogia barata é totalmente desmentida pelos números adiantados ao Expresso por Alexandre Lourenço presidente da Associação de Administradores Hospitalares: mais de de um milhão de consultas, 100 mil cirurgias e sete milhões de contactos presenciais nos cuidados primários ficaram por realizar desde abril. Além disso, é impossível não ligar esses dados ao excesso de mortalidade de mais de 5.738 óbitos.

Seria bom que a ministra Marta Temido percebesse que a ideologia não cura nem dá de comer a ninguém. A não ser que prefira mandar doentes portugueses para países estrangeiros (quais?), como a Bélgica está a ponderar fazer, em vez de recorrer a acordos com os grupos privados de saúde.

4Já sabíamos que tínhamos um primeiro-ministro sem rasgo nem projeto para o país, que se limitava a gerir a folga financeira provocada pela política de juros baixos do Banco Central Europeu e a aproveitar o controlo da despesa pública iniciada pelo Governo Passos Coelho — com a diferença de esmifrar ainda mais os contribuintes e reduzir o investimento público ao mínimo olímpico.

Agora ficamos a conhecer a a sua falta de capacidade para liderar e gerir o país em tempos difíceis. Tal como António Guterres revelou durante os seus dois governos, também António Costa prefere o caminho mais fácil.

António Costa não é um líder que aponte o caminho, não é o homem do leme. Pelo contrário: a crise pandémica provou que é um líder que prefere ser liderado pelos portugueses a ser obrigado a tomar decisões impopulares.