A maioria de nós conhece alguém que já comprou Bitcoin, ou pelo menos já ouviu alguém falar que se pode fácil e rapidamente multiplicar o dinheiro investido: dinheiro fácil e rápido! Há dias, fomos surpreendidos com a notícia bombástica de que a Tesla comprou 1,5 mil milhões de Bitcoin, fazendo disparar o valor da moeda, sendo que a Tesla também planeia vir a aceitar pagamentos através de Bitcoin. Que conclusões retirar de tudo isto? Muitos dizem que a Bitcoin é um caso de sucesso e que a Tesla se está a posicionar no mercado das criptomoedas que é o futuro. Mas será que este é o futuro que queremos? E, se sim, então porque é que o futuro é tão oposto ao presente e ao passado recente?

Os principais problemas da Bitcoin (como de outras criptomoedas em circulação) são exatamente as características que costumam ser apontadas como as suas maiores virtudes: um sistema de critpomoeda descentralizado e não controlado pelos Estados; e um sistema de pagamentos anónimo (ou, pelo menos, que permite facilmente o anonimato, especialmente em investidores sofisticados que não recorrem a plataformas e serviços financeiros para as adquirir), em que não se sabe a identidade de quem detém e paga. Em particular, a questão do anonimato permite que a Bitcoin seja um instrumento privilegiado para transações ilegais e criminosas, das quais destaco o financiamento do terrorismo e os pagamentos de serviços transacionados na Dark Web, que, como se sabe, é onde operam as redes de pedofilia, tráfico de pessoas, tudo o que possam e tudo o que não conseguem imaginar.

Como estamos perante uma moeda descentralizada e não controlada pelos Estados, alguns dos fatores que fazem as ações das empresas (bem como outros instrumentos financeiros) valorizar ou desvalorizar não afetam o valor da Bitcoin, como sejam políticas monetárias, taxas de juros, inflação, etc. Diferentemente, a valorização ou desvalorização da Bitcoin está muito mais relacionada com o próprio funcionamento da moeda (o volume de mineração da Bitcoin, custos com mineração, etc.) e com a maravilhosa lei da procura, que nos diz que quando a procura de Bitcoin aumenta, o seu preço também aumenta – especialmente tendo em conta que a oferta não parece conseguir afetar o mecanismo de preços. Assim, embora não seja possível saber ao certo, é fácil de intuir que, tal como a Bitcoin valorizou significativamente com o investimento de 1,5 mil milhões feito pela Tesla, também terá subido e continuará a subir quando terroristas, pedófilos e outros criminosos procuram a Bitcoin para adquirirem os bens e serviços que tanto desejam — especialmente, se tivermos em conta que a Bitcoin ainda não serve como meio de pagamento para quase nada. Portanto, a meu ver, os ganhos rápidos e fáceis com que somos seduzidos para a compra de Bitcoin estão envenenados pelo facto desta ser uma critpomoeda altamente utilizada para pagamentos criminosos — afinal, qual é a diferença entre Bitcoins e diamantes de sangue?

Além deste problema, que é particularmente grave, a Bitcoin permite também a indivíduos e empresas funcionarem numa espécie de sociedade paralela em que as regras deixam de ser aplicáveis. E estes problemas são particularmente graves quando envolvem uma empresa com a dimensão e projeção da Tesla, que, ainda por cima, é uma empresa cotada e obrigada, por isso, a especiais deveres de transparência e prestação de informações.

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Desde o virar do milénio que os Estados e organizações internacionais se têm focado em combater o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, bem como a fraude e a evasão fiscal. Com sucesso. Por exemplo, enquanto advogado, a lei obriga-me a denunciar casos de branqueamento de capitais de que eu tenha conhecimento (inclusivamente de clientes), tal como acontece com outros profissionais. Ninguém pode fazer pagamentos em numerário superiores a três mil euros (se for estrangeiro pode pagar em numerário até 10 mil euros), e se for um empresa este montante é limitado a mil euros. As transferências bancárias de mais de mil euros são fiscalizadas pelos bancos, tendo de ser identificados o sujeito pagador e o beneficiário, e as transferências de mais de 15 mil euros devem ser analisadas pelos bancos, nomeadamente no que diz respeito a quem paga, quem recebe e qual a razão para o pagamento ser realizado. Os Estados, incluindo Portugal, podem aplicar sanções a quem proponha estruturas de planeamento fiscal agressivo; obrigam os contribuintes a declarar tudo e mais alguma coisa; aumentam significativamente o controlo sobre os contribuintes. Em Portugal, a AT tem uma atuação implacável, cruzando dados, informações e declarações, recorre a presunções e métodos indiretos para garantir a tributação e por aí fora. Sou dos que acham que muito disto é excessivo (embora isto seja uma outra discussão), mas há muitos que se perguntam: qual é o problema?

Pois, o problema é exatamente criarem-se estes níveis de report e compliance para uns, enquanto se tolera a existência de criptomoedas que criam um mundo paralelo em que nada disto se aplica. Por um lado, se eu fizer uma transferência de 15 mil euros através do sistema bancário tenho de a justificar e fica registada; mas se eu fizer uma transferência de um milhão em Bitcoins, posso manter o anonimato e não preciso de justificar a ninguém a razão do pagamento: seja corrupção, pedofilia, armas, homicídios, ou carros da Tesla. Por outro lado, os Estados que tudo tributam e estão num esforço constante para alargarem a base de tributação e os mecanismos de controlo aos contribuintes abstêm-se, frequentemente, de tributar as mais-valias (os ganhos rápidos e fáceis) gerados por quem investiu em Bitcoin (veja-se, por exemplo, a Informação Vinculativa emitida pela AT portuguesa, Processo n.º 5717/2015 de 27 de Dezembro de 2016, que considera que os ganhos com Bitcoin não são enquadráveis na Categoria G do IRS, sendo que o legislador não fez nada para alterar a lei ou este entendimento). Portanto, se o contribuinte investiu em ações e gerou mais-valias paga imposto, se investiu em Bitcoins não paga imposto.

Quero esclarecer que não sou contra as criptomoedas e concordo que estas podem ter um papel importante nos mercados financeiros do futuro, especialmente se emitidas e controladas pelos bancos centrais como qualquer meio generalizado de pagamento (a emissão de moeda por privados já existiu e foi um desastre). No entanto, não podemos aceitar que exista um meio generalizado de pagamento fora do Estado, que ninguém controla, e, acima de tudo, que se permita a coexistência destes dois mundos: um, preocupado em combater o financiamento de atividades ilegais, e um outro, em que se facilita o financiamento destas atividades, utilizando um meio de pagamento cujo valor aumenta quando aumenta a procura por parte de criminosos. E se acho que o investimento em Bitcoin por parte de indivíduos deveria ser proibido, o que dizer da compra desta moeda por parte de uma empresa cotada em bolsa, como a Tesla, que ainda por cima está a considerar aceitá-la como meio generalizado de pagamento.

A pergunta que se coloca é: até quando iremos permitir que a Bitcoin exista?