O tempo passa e há já quem tenha caído com o peso das suas dívidas durante a crise e já se tenha levantado ou reduzido o seu nível de vida. Se é esse o seu caso é porque não devia centenas de milhões de euros, não estava integrado na rede do poder ou não pertencia a nenhum grande clube de futebol. Para esses, que deviam centenas de milhões de euros, os bancos não têm meios para os obrigar a pagar ou a falir e os mais diversos poderes defendem-nos com o sigilo bancário, ao mesmo tempo que se apresentam como defensores dos desfavorecidos. Nunca como hoje se teve um discurso e se actuou de forma oposta ao que se diz.
Porque não conseguem os bancos que os grandes devedores lhes paguem? Estão protegidos por contratos jurídicos invioláveis, argumenta-se. Ou nada têm nas empresas que eram suas e que, em muitos casos, desnataram. Ou nada têm em nome pessoal como aconteceu por exemplo com Nuno Vasconcellos da Ongoing que só tinha uma mota de águaquando o BCP finalmente resolveu executar a sua dívida de 9,7 milhões de euros.
Bem vindos pois a um país onde os grandes devedores conseguem continuar a dever sem que nada lhes aconteça enquanto outros, os pequeninos, pelo menos alguns, já tiveram tempo para pagar o que devem e reconstruir as suas vidas. Ou estão ainda a pagar caro os erros que cometeram.
Bem vindos a um país onde um banqueiro pode receber uma liberalidade de um cliente sem que nada lhe aconteça, para além de estar enredado em processos judiciais. Ou ao país em que um banqueiro pode conseguir financiamento para empresas do grupo da família, enganando gananciosos ou analfabetos, sem que nada lhe aconteça. Ou antes, o que lhe acontece é o Estado substitui-lo como credor.
Bem vindos a um país onde modestas pessoas, muitas iletradas e info-excluídas, ficam sem uma agência bancária a poucos quilómetros do sítio isolado onde vivem porque houve homens integrados nas redes do poder que não pagaram o que deviam ao banco do Estado que, por sua vez, concedeu esse crédito por orientações políticas, amiguismo ou critérios duvidosos que estão a ser avaliados pela justiça.
Bem vindos ao reino em que alguns homens, que abriram portas financeiras ou jurídicas para outros homens acederem a centenas de milhões de crédito que lhes dava o estatuto de banqueiros ou empresários, continuam a com poder para ditar as regras que do reino.
Bem vindos ao reino onde se leva à miséria quem deve milhares à banca ou se processa sem dó nem piedade quem deve centenas ao fisco e protege-se, a coberto do sigilo bancário, quem deve centenas de milhões e tem nas costas a responsabilidade do dinheiro que alguns bancos precisaram, nomeadamente a CGD.
Bem vindos ao reino que, numa luta sem quartel pela sua auto preservação, defende-se o sigilo bancário como se fosse um valor absoluto, indiferente à necessidade de apurar responsabilidades que podem mudar mentalidades e atacar o coração de uma elite rentista que condena o povo ao subdesenvolvimento.
Bem vindos ao reino da impunidade, ao reino em que a elite responsável ou cúmplice do problema dos bancos vai armadilhando a justiça com falta de meios e assim se vai preservando.
Bem vindos, enfim, a um reino que devia ser de uma fantasia de terror.
Quando se diz que não há uma única pessoa responsabilizada pelo que se passou na banca portuguesa é dizer pouco. Porque além de não existirem responsáveis pela concessão de crédito sem a devida avaliação de risco ou com critérios duvidosos – porque é disso que se trata e não de eventos inesperados que geraram incumprimento -, há igualmente grandes devedores que se podem dar ao luxo de continuara dever e, no limite, a fingirem que são empresários porque são protegidos pelo “sigilo bancário”.
Como se tudo isto não bastasse está criada em alguns bancos a ideia de adiar ainda mais a limpeza do malparado, opondo-se à proposta da iniciativa da Alemanha e da França de obrigar a uma redução para 5% da carteira de crédito. E ouvimos da Associação Portuguesa de Bancos exactamente os mesmos argumentos usados para convencer a troika a não aplicar em Portugal a solução de limpeza geral usada na Irlanda – e que a CGD acabou por adoptar no seu último aumento de capital. Estamos à espera de uma nova crise para termos ainda de gastar mais dinheiro a salvar bancos? (Atenção que a salvação dos bancos é uma expressão lata para dizer que estamos a salvar, e bem, depósitos. Mas esta solução que considero ser a que tem menos custos para a economia não pode ser o caminho para desresponsabilizar quem fez uma gestão danosa e perdoar grandes devedores).
Quem assim reina frequentou as mesmas escolas ou colégios, as mesmas faculdades, concentra-se basicamente em Lisboa, é um grupo de amigos e conhecidos que troca cumplicidades e favores. Um grupo transversal aos partidos que vai expurgando quem a ele não pertence ou se atreve a tentar mudar esta elite que controla o poder a seu favor, mesmo com discursos de defesa do povo. Este reino da impunidade terá um dia consequências graves. Por tudo isto mas também pelo que temos assistido nos últimos tempos, resta-nos estar gratos por não termos ainda em Portugal um partido populista de tipo autoritário em Portugal.