A onda de protestos que rebentou na América e na Europa está longe de ter apenas a ver com o assassinato de George Floyd, com a violência policial, com as tensões sociais e económicas que a incerteza da pandemia acentuou ou com a discriminação racial que vitima, ainda hoje, as comunidades afro-descendentes no mundo. Aquilo a que assistimos em capitais europeias como Bruxelas, Berlim, Amesterdão, Londres ou Lisboa foi contrastante com o que se passou nos Estados Unidos e até contrastante entre si. A América em que se pilhou foi a mesma América onde se protestou pacificamente. O Portugal em que se apelou vergonhosamente à morte de polícias foi o mesmo Portugal onde se quis mostrar solidariedade a uma comunidade que se sente discriminada. Seria desonesto de ambos os lados avaliar o todo pela parte, na medida em que as manifestações não foram homogéneas, nem dentro delas. Por mais irónico que seja partidos marxistas como o Bloco de Esquerda utilizarem o que acontece na América como referência, devemos olhar para lá do que eles pretendem exibir.

Quando nações europeias se predispõem a serem confrontadas com a sua História, o embate é necessariamente mais profundo do que o verificado nos EUA por uma razão simples: temos mais passado por onde ter errado. A questão que o tumulto das últimas semanas coloca é se a rua deve ser a arena de confronto entre esse passado e o quadro moral da contemporaneidade.

Essencialmente, os negacionistas do racismo e os ativistas contra o racismo partilham duas maleitas: uma obsessão absurda com a semântica (como se a eliminação do termo “Descobrimentos” fosse resolver alguma desigualdade ou dizer que há racismo num país tornasse todo o país racista) e um extraordinário desconforto com a consciência histórica dos seus povos. Em 1783, George Washington afirmou que “o seio da América está aberto a receber não só o opulento e respeitável estrangeiro, mas o perseguido e oprimido de todas as nações e religiões, a quem daremos boas-vindas e participação em todos os nossos direitos e privilégios, se assim o merecerem por decência e conduta”. Mais celebremente, Thomas Jefferson escreveu na Declaração da Independência que “todos os homens são criados iguais”, sendo, para furtar a ancestral expressão, auto-evidente que o humanismo dessa herança diz muito pouco ao atual Presidente, Donald Trump.

O desprezo pelo património histórico de cada um tornou-se, no entanto, omnipresente na dita guerra cultural. Quando filmes são suspensos de serviços televisivos, estátuas de empreendedores navais derrubadas, memoriais de heróis da democracia vandalizados e discursos de ódio contra caucasianos proferidos (“Eram eles, os brancos, que deviam estar aqui”, berrou Joacine) reconhecemos uma vontade extrema, não de debater a História, mas de reescrevê-la ou apagá-la. Como a deputada não-inscrita confirmará se pegar num livro, o racismo existiu e existe em todo o lado, entre a multicidade das etnias. Na História, a jornada da liberdade é trabalhosa, lenta e global, não se resumindo às clivagens que a esquerda portuguesa prefere.

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Inevitavelmente, essa polarização de uma causa que devia ser o mais unânime possível – o anti-racismo – irá prejudicar a luta contra o racismo. Se os movimentos insistirem em confundir humanidade com anarquismo, decência com violência, ativismo com revolta, irão alienar a sociedade de algo que tinha tudo para ser consensual: o combate à discriminação. Como disse Keir Starmer, líder da oposição ao governo de Boris Johnson, as intenções das manifestações são nobres, mas as precauções de saúde numa pandemia são indispensáveis e o respeito pelas instituições democráticas também. Não se podem, avisou o trabalhista, remover monumentos sem reunir os representantes eleitos das comunidades (no caso britânico, o city council). E é também isso que devemos fazer em Portugal.

Se a colisão entre a antiguidade da História e a persistência das desigualdades nos chegou, a plataforma para esse choque tem de ser alargada e estabilizada. Devem ouvir-se associações, partidos, assembleias, fundações, museus e universidades de modo a preservar ao máximo o foco do problema, com factos, números e pluralismo. Tudo o resto – cartazes anti-capitalistas, desfinanciamento da polícia, gritos contra a vida dos seus agentes, violações de liberdades e direitos como a propriedade privada – impedirá as sociedades abertas de olharem seriamente para um tema que existe, que é real e que merece ser discutido abertamente. Negá-lo não é solução. A ferida que abriu pelo Ocidente – entre o que fomos e o que queremos ser – cicatriza-se com integração institucional e democracia, não com incentivos a agressões, cocktails ideológicos ou preguiça política.

Talvez uma boa forma de abrir essa conversa seja, afinal, com uma pergunta. Como sabemos, a Casa Branca foi construída por escravos. Para o meu caro leitor, o que combateu ou combateria mais o racismo na América: eleger o primeiro Presidente negro ou demoli-la?