1Para que não fiquem dúvidas: Bolsonaro é um político sem espírito nem cultura democrática. As insinuações de que as eleições não seriam justas, o silêncio de quase 48 horas depois dos resultados, e a incapacidade de felicitar o vencedor diminuem a qualidade da democracia, e revelam um comportamento condenável num Presidente da República. Pior, o comportamento de Bolsonaro durante o Covid foi inaceitável. Não soube ser o líder de um país que enfrentava uma pandemia, e durante a qual morreram centenas de milhares de pessoas.
Mas a falta de cultura democrática não significa ameaça à democracia e muito menos uma tentativa de instaurar uma ditadura. Bolsonaro nunca tentou acabar com a democracia no Brasil. Vamos aos factos, comparando a democracia brasileira com as ditaduras russa e chinesa. Na Rússia e na China, não há separação de poderes, com o poder judicial completamente controlado pelos ditadores, Putin e Xi. Nem o pior inimigo do ainda Presidente brasileiro pode afirmar que Bolsonaro controla a justiça brasileira. Aliás, Lula saiu da prisão durante a presidência de Bolsonaro. Na Rússia e na China, os opositores vão para a prisão.
Vamos agora à liberdade de imprensa. Na China e na Rússia, não há imprensa livre. No Brasil, a maioria dos órgãos da comunicação social não só são livres como passaram quatro anos a criticar Bolsonaro. Aos inúmeros jornalistas brasileiros que falam do “autoritarismo de Bolsonaro”, ou das “ameaças à democracia”, desafio-os a irem fazer jornalismo para a Rússia ou para a China para verem o que é a falta de liberdade ou um regime autoritário.
Além disso, durante o mandato de Bolsonaro, assistiu-se ao reforço da natureza parlamentar da política brasileira, com o Congresso a ganhar poder em relação ao Presidente. Foi a mudança mais importante da política brasileira dos últimos quatro anos (e foi na direção oposta de uma ditadura), mas para entendê-la devidamente, é necessário estudar a política brasileira e não repetir apenas o que se ouve ou ficar impressionado com a retórica política, por mais chocante que ela seja. Os factos são mais relevantes do que as palavras.
Por fim, como se viu, as Forças Armadas brasileiras nunca estiveram disponíveis para qualquer golpe, ao contrário do que muitos disseram atacando sem qualquer fundamento a integridade dos militares. Quem conhece a política brasileira, sabe que as chefias militares não têm muito respeito por Bolsonaro, nem estariam dispostos a envolverem-se em aventuras políticas.
O que mais uma vez aconteceu foi a diabolização por parte da esquerda de um candidato da direita. É óbvio que Bolsonaro, com as suas afirmações chocantes e com o seu comportamento primário, ajudou a estratégia da esquerda. Aliás, a esquerda brasileira pode agradecer a Bolsonaro: só um candidato como ele permitiria o regresso de Lula. Mas o que prejudica a qualidade da democracia é a falta de honestidade intelectual, a falta de seriedade e a ignorância. Tudo isso houve em abundância no último mês nas discussões sobre o Brasil.
2Enquanto muitos em Portugal se preocuparam muito com a democracia no Brasil, quase todos ignoram o que se passa no Irão. Na antiga Pérsia, existe mesmo uma ditadura, onde não se respeitam liberdades fundamentais. No Irão, há cerca de um mês centenas de milhares de iranianas e iranianos protestam nas ruas e desafiam um dos regimes mais violentos do mundo. Isso sim, é coragem e é um enorme exemplo de luta pela liberdade e pela democracia.
Além disso, são protestos liderados pelas mulheres iranianas. Chegaram ao limite e não aceitam continuar a viver numa dupla ditadura: a ditadura política do regime teocrático, e a ditadura da desigualdade entre homens e mulheres. Como podem os nossos líderes políticos preocuparem-se tanto com a democracia brasileira e não dizerem uma palavra de apoio aos iranianos que lutam, esses sim, pela liberdade?
Como podem as nossas televisões ignorar o que se passa no Irão? Nas televisões portuguesas há debates sobre tudo, mas já viram algum debate dedicado ao que se passa no Irão? Em Portugal, há especialistas sobre tudo, não há um ou dois especialistas sobre o Irão para irem às televisões explicar a luta pela democracia dos iranianos?
E os nossos militantes pelos direitos das mulheres, onde estão? Com honrosas excepções, a maioria está calada e ignora o Irão. Onde estão as manifestações em frente à embaixada do Irão em defesa do combate das iranianas? Onde estão os baixos-assinados a favor da luta pela democracia no Irão?
É muito triste e preocupante quando nos países democráticos já não se consegue distinguir entre o populismo demagógico e as tentativas de instalar uma ditadura. Muito mais triste ainda, é quando as sociedades democráticas e os seus líderes ignoram aqueles que estão a lutar mesmo pela democracia.
Como se costuma dizer hoje em dia, eu sou iraniano e tenho uma admiração profunda pela coragem das mulheres iranianas. Elas sabem o que é a falta de igualdade, de direitos e o que é lutar pela liberdade e pela democracia. Não podem ser ignoradas. Merecem ser apoiadas.