A música Dancing In The Dark surgiu pela primeira vez num dos filmes de Fred Astaire (Band Wagon, 1953), de forma meramente instrumental, ilustrando uma dança em pleno Central Park. Escrita por Arthur Schwartz e Howard Dietz, também autores de clássicos do jazz como You And The Night And The Music, I See Your Face Before Me e Something To Remember You By, seria eternizada, mais tarde, pela voz de Frank Sinatra enquanto tema do Great American Songbook. A letra, se a traduzíssemos, diria algo como: “dançando na escuridão, até a música acabar; dançamos na escuridão, e ela quase no fim; na maravilha de estarmos aqui, o tempo passa, até irmos embora; à procura de um novo amor, para acender a noite; tenho-te a ti, para dançar na escuridão”.

Ao ler a entrevista de Emmanuel Macron ao Economist, em vésperas de reunião atlântica, o meu rádio tocava, muito apropriadamente, Dancing In The Dark. E a pergunta surgiu: para quem cantava o presidente francês? Perante uma conversa tão extensa e tão cáustica (a NATO “em morte cerebral”; a UE “à beira do precipício”) é tonto identificar um destinatário único. Mas os aplausos vieram, fundamentalmente, de um lado da plateia: Moscovo. E percebe-se porquê.

No diálogo de Macron com Sophie Pedder, que é também a sua primeira biógrafa, uma nota sobressaiu: “Se queremos construir paz na Europa e reconstruir uma estratégia europeia autónoma, temos de reconsiderar a nossa posição com a Rússia”. Para o presidente francês, a autonomia europeia depende de não contar com a Rússia como inimigo, propondo uma relação de confiança com Vladimir Putin “alinhada na questão do terrorismo”.

É um tanto irónico que o homem que ia trazer uma nova esperança de democracia e progresso à União Europeia chegue a meados do seu primeiro mandato defendendo uma aproximação a Putin e uma comunhão de princípios com Viktor Orbán – ambas bandeiras da candidata que Macron derrotou em 2017 e que presumivelmente enfrentará em 2022: Marine Le Pen. Mas nas relações internacionais, citando um humorado embaixador francês, “há sempre tendência a exagerar a coerência dos adversários”.

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Deixando o eleitoralismo para os eleitos, a chamada de atenção de Emmanuel Macron tem diagnósticos indisputáveis e soluções dúbias. A ameaça de Pequim à soberania digital europeia é um facto e é bom ouvi-lo vindo do Eliseu. O recuo americano na arena internacional – particularmente no Velho Continente – também o é e esta coluna já o havia reconhecido. A retirada das forças norte-americanas da Síria, deixando os curdos à mercê da Turquia, foi, mais do que um recuo, uma deslealdade de Donald Trump. No entanto, as alternativas à liderança americana avançadas por Macron não demonstram a mesma solidez que a sua franqueza.

Em primeiro lugar, como instrumentos para a tal autonomia estratégica europeia, o presidente francês referiu a Cooperação Estruturada Permanente (PESCO), de que Portugal faz parte, e o Fundo Europeu de Defesa, de que Portugal também faz parte. Ambos não correspondem, nem por sombras, a mecanismos capazes de preencher vazios que a NATO deixe ou venha a deixar. A sua aprovação em Portugal, por exemplo, foi apenas votada depois de se escrever no diploma que não representariam qualquer substituição ou desfavorecimento do tratado atlântico.

Ao declarar o óbito de uma das alianças mais bem sucedidas da história, Macron não garantiu o sucesso ou o reforço da integração comunitária para a defesa; antes pelo contrário. Basta ler as reações alemãs ou polacas para compreendê-lo. Até o nosso MNE, mestre na diplomática arte do cinismo, veio deixar claro: “a política europeia de segurança deve robustecer o pilar europeu da NATO e não substituí-lo”. Todo o debate perde seriedade se não nos interrogarmos antecipadamente: a opinião pública aceitaria prescindir de Estado Social Europeu para pagar os custos de uma Defesa Europeia Unida? Numa Europa que nem o contributo mínimo para a NATO cumpre?

Em segundo lugar, a ideia de que a Rússia cessará um comportamento agressivo caso o Ocidente procure uma arquitectura de reconciliação pode ser algo ingénua. Nunca, para dar outro exemplo, uma presidência americana foi tão publicamente submissa ao Kremlin e isso não apaziguou minimamente o revisionismo de Vladimir Putin. Não deixa de ser irreal que a França que aprovou no Conselho Europeu as conclusões que responsabilizaram Moscovo por atacar quimicamente o Reino Unido (caso Skripal, 2018) seja a mesma França que quer hoje colaborar com a Rússia em matérias de terrorismo.

Quem possuir o mínimo de memória poderá pensar que Emmanuel Macron, como rezava a música, anda à procura de um novo amor, antes que a música acabe, dançando na escuridão.