1 Quem diria tanta aceleração? Da deliquescência a este actual “estado de vazio” tem sido um passo. Ponho entre aspas porque o vazio é ainda meio difuso, indefinido, mas ele aí está. Existe pelo menos o sentimento – palavra ardilosa – de uma terra de ninguém: sabe-“se” que não se está politicamente bem entregue, da mesma forma que não se sabe bem que nova morada aí vem. Mais ou menos é isto. (Claro que é na futura morada política que tudo reside, um nó górdio de duvida e incertezas mas o próprio de um “estado de vazio” é justamente a não imediata percepção de um caminho como o mais ajustado para o que as circunstâncias reclamam. Ou impõem. Lá virá o tempo.)

2 O que parece impossível é discordar de que há um desnorteio. Deixo apenas três exemplos, breves, intensos e eloquentes, todos. São conhecidos, é verdade., peço desculpa por maçar. É porém ainda mais verdade que não podem ser esquecidos, varridos com leveza e destreza para debaixo do (infectado) ar do tempo.

Quem atente na intervenção de António Costa na reunião da Comissão Política do PS ocorrida há dias é em desnorteio que pensa: as “prioridades” que lançou — e nas quais ia insistindo com a aflição de um náufrago — quase humilham o país: deviam estar tratadas. Algumas delas a caminho de o estar, outras, em bom andamento, outras ainda, quase concretizadas. À excepção da (incerta) execução do mais recente Plano de Restruturação e Resiliência (PRR), o lote apresentado é dramático pelo que revela do pouco feito ou não feito, não melhorado, não intervencionado. Pergunta legítima: um lote com esta importância não constava afinal da agenda do primeiro ministro mal ele entrou em funções? Ou constava e durante dois governos fez-se pouco ou pouquíssimo caso?

Relembro: “reforma do Serviço Nacional de Saúde” (sete anos depois do início da governação e seis depois das cativações que começaram a destruir o SNS é credível a palavra “reforma”?); “política de habitação” (uma chaga que o governo não viu alastrar prejudicando centenas de milhares de portugueses, legitimamente aflitos por um canto, debaixo de telha); “agenda do trabalho digno” (tanto, tanto ainda por fazer em questão tão crucial para salvar o hoje e redimir de persente tao nefasto); “modelo dos professores” (o assunto é sério. Nem se resolve com manifestações, embora bem se compreendam. Era preciso outra competência. Um fôlego que não se restringisse a uma troca de cadeiras mas a uma revolução. E já agora, ninguém pede contas a Tiago Brandão Rodrigues?); “conclusão da descentralização” (à pressa, de qualquer maneira, para mostrar serviço no desespero de uma crise grave?).

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Deixo à consideração.

Ouvindo o chefe do governo falar para a sua gente, é como se estivéssemos a voltar a casa de partida, com um recém chegado António Costa, a passar, há sete anos, a porta da residência oficial de S. Bento. Falta a TAP, vergonhas das vergonhas: desprivatizada porque era preciso fazer o contrário de Passos Coelho mendiga hoje uma reprivatização em condições mil vezes menos favoráveis. No entanto devora vorazmente o nosso dinheiro. Uma história de terror.

Segundo exemplo: que dizer da existência de um questionário de avaliação de portugueses candidatos ao Executivo do país? Uma dúzia de demissões por feias razões explicam muita coisa no desnorteio reinante mas… em todo o caso, uma pergunta legitima: António Costa admite que não é capaz de separar o trigo do joio? Auto-demite-se da responsabilidade de ter um critério, o seu? Teme o fracasso insuportável de futuras escolhas? Enxota responsabilidades através de um “certificado” de seriedade? Eu sei, já não se quer ouvir falar do questionário, causa um pasmo enjoado (ou enojado). Mas não, paciência: trata-se da negação da política. estamos a caminho do seu grau zero.

Pedindo desculpa ao leitor – caso ainda me reste algum – só mais uma pergunta: nenhum dos “autores” da redação das 36 perguntas se apercebeu da eventualidade da sua ineficácia para o propósito em causa? (Alguns dos afastados recentes teriam via verde para a governação…). O Presidente da República valida a sua “utilidade” para apurar “incompatibilidades.” Assim?

Por este andar a luz verde passará com celeridade a linha vermelha: alguém normalmente constituído, sério de caracter, praticante natural da ética, se exporá a este vexame? Pelo menos ninguém que tenha uma família, uma profissão, um património. Uma vida, enfim.

Terceiro exemplo e porque os últimos serão os primeiros: o Presidente estará ele próprio também contagiado pelo que de inusitadamente absurdo ocorre politicamente no país? Decidiu ganhar tempo através de um, digamos, artificio chamado “ governo com data de validade”. O Presidente “dá” um ano ao Executivo? Dá? Mas “dá” como? Uma estreia absoluta: a instituição presidencial intervindo directamente (inexplicavelmente?) na esfera governativa.

3 Lembramo-nos todos de alguns maus dias políticos. (Ou péssimos). Tão estranhamente maus como estes, não me lembro.

PS: Porque é que Marcelo  Rebelo de Sousa é tão, tão brilhante a discursar — como na terça-feira no Museu dos Coches, entre mil outros exemplos que poderia dar — e tão mais baço e retraído a presidir?