A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fez mais um discurso do estado da União Europeia. E repetiu o que tem sido um mote da sua presidência: a Europa precisa de ser mais estratégica. Acrescentou ainda que nesta busca pela estratégia europeia é necessário ter em conta as lições do Afeganistão. Mas quais são elas? Destaco duas que me parecem ter grande importância para construção de uma UE mais estratégica.

Que a força esteja contigo

Apesar de todos termos assistido à dramática tomada pelo poder dos talibãs pela força no Afeganistão, parece haver quem, estranhamente, retire daí como conclusão que o poder militar não tem importância na política internacional. Ora, que eu saiba, os talibãs não ganharam eleições, nem parecem muito interessados em organizá-las. É dos poucos regimes no mundo declaradamente de direito de divino. E o Deus dos talibãs é o velho Deus das batalhas: quem vence, supostamente, tem a bênção divina para governar.

É claro que isto não quer dizer que basta contar canhões ou mísseis. Se a política internacional fosse assim tão simples, não era necessária estratégia. De facto, ter a força militar mais poderosa do Mundo não garantiu uma vitória política aos EUA e aos seus aliados no Afeganistão. Porém, a lição a tirar daqui deve ser que é fundamental saber usar a força de forma mais inteligente e estrategicamente eficaz. Isso implica, desde logo, reconhecer o tipo de conflito em que estamos. Não se ganha uma guerra de guerrilha, no Afeganistão ou noutro lado qualquer, construindo um enorme exército convencional. Implica também ter objetivos mais realistas. Devemos, por isso, abandonar definitivamente a ilusão de que é possível transformar países mergulhados na pobreza e na guerra, em poucos anos, numa Suíça. Isso não significa que a aposta na melhoria das condições de vida não seja importante, mas há que apontar para prioridades mais pragmáticas.

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É positivo que von der Leyen tenha deixado bem claro no seu discurso que é indispensável a Europa ter uma efetiva capacidade militar. Assim é, para garantir que os interesses e os valores dos países europeus são respeitados, não apenas pelos seus inimigos, mas até pelos seus aliados. As propostas concretas feitas no discurso, de um centro de partilha de informações sobre zonas de crise, e da isenção do IVA em material militar, vão no sentido certo, mas não são suficientes. É verdade que a Comissão Europeia tem poderes limitados no campo da defesa. Nomeadamente, é ao Conselho, ou seja, aos governos dos 27 Estados Membros da UE, que cabe avançar com um Quartel-General com efetiva capacidade de comando operacional de todo o tipo de missões militares. Isso é imprescindível se a UE quiser como diz a Presidente da Comissão, ser um ator global realmente completo e credível. Veremos se a Bússola Estratégica – o primeiro documento estratégico europeu especificamente para a Segurança e Defesa, que está previsto para o início de 2022 – apontará no sentido certo.

Não somos o centro do universo, precisamos de pragmatismo

Está na moda, como sabemos, atribuir todos os males do Mundo ao imperialismo ocidental. Esta é uma cartilha completamente eurocêntrica que, em nome de um alegado combate ao racismo e ao eurocentrismo, na verdade, reduz a maioria dos Estados a meros peões ou vítimas. Ora, nunca foi assim, e no Mundo atual ainda menos é assim. O que, evidentemente, não quer dizer que não se possa ou deva criticar certos erros das potências ocidentais.

É claro que os EUA sofreram no Afeganistão não só de um excesso de ambição, mas um excesso de ambições. Ou seja, mudaram demasiadas vezes de prioridades estratégias, estas foram muitas vezes excessivamente ambiciosas, e pouco ou nada tiveram em conta a realidade local. Biden declarou-se chocado com o facto das Forças Armadas afegãs que os EUA ajudaram a construir, supostamente com 300.000 militares, não terem conseguido lutar eficazmente contra os talibãs. Aparentemente, o Presidente norte-americano não se deu conta de que a tentativa de replicar uma organização militar à imagem dos EUA num país como o Afeganistão, e naquela escala, só poderia dar péssimo resultado. Mais, numa guerra de guerrilha é fundamental isolar a guerrilha dos apoios externos. Ora, os talibãs contaram sempre com uma retaguarda segura no Paquistão, onde a sua liderança se refugiou em segurança nestas duas décadas. E o Paquistão, por sua vez, tem-se afastado cada vez mais dos EUA à medida que se aproxima da China, em linha com a sua prioridade estratégica de contenção da Índia.

Em suma, estamos a viver num Mundo em que, ao contrário das ilusões do “Fim da História” da década de 1990, os EUA e a Europa encontram cada vez mais obstáculos ao exercício da sua influência. Temos a China a oferecer alternativas interessantes ao Ocidente, sobretudo, em termos de comércio e de investimento, e a Rússia a fazê-lo em termos de fornecimento de armamento e de apoio militar, ambos sem imporem qualquer condicionalidade em termos de direitos humanos ou de boa governação.

É, por isso, muito importante a insistência de von der Leyen na necessidade da UE ser mais estratégica na sua ação externa. Neste seu discurso ela apresentou o projeto dos Global Gateways destinado a fazer a uma gestão mais estratégica do investimento europeu no apoio ao desenvolvimento de infraestruturas em países fora da UE. E deu até como bom exemplo o cabo submarino de dados que passou a ligar Portugal ao Brasil este ano.

Não faz, efetivamente, sentido a UE aprovar cegamente apoios a investimentos estratégicos noutras regiões do Mundo sem ter em conta o uso que dele farão os Estados em questão, e sem ter em conta qual o seu grau de convergência com as prioridades estratégicas dos europeus. Outra coisa é a ajuda humanitária e de emergência, e outra coisa ainda o diálogo diplomático. A diplomacia não foi inventada para lidar apenas com amigos, mas também, e até principalmente, com adversários e mesmo inimigos. Mais, pode suceder que regimes não-democráticos tenham objetivos estratégicos convergentes com os da Europa em certas dimensões. Von der Leyen refere, e bem, o papel vital da China no combate às alterações climáticas. Ao nível da ajuda humanitária, e mesmo de alguma ajuda ao desenvolvimento, ela pode ser direcionada para projetos locais independentemente da natureza do regime desse país. Como von der Leyen afirmou, a Europa deve continuar a apoiar projetos da sociedade afegã, mesmo com os talibãs no poder, se tal for possível. Em suma, a Europa deve reforçar os seus meios militares e moderar os seus objetivos. E temos de recuperar alguma flexibilidade na nossa ação externa. Isto não significa abandonar os nossos valores. Significa, isso sim, abandonar ilusões de que podemos simplesmente refazer o Mundo à nossa imagem.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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