Vivo numa casa com varanda. É uma varanda pequena com gradeamento de ferro acima das copas das árvores do separador central da rua. É nessa pequena varanda, numa mesa colorida entre vasos de alfazema, que tomo o pequeno-almoço nas manhãs de primavera, leio o jornal ao fim de semana, almoço quando o sol permite, e me sento a ouvir a chuva quando o vento não bate de frente. Durante o confinamento foi aí que ouvi o silêncio das ruas vazias e os papagaios verdes estrepitosos, no seu regresso ao fim da tarde. Agora, aos Domingos, oiço os cânticos do culto das onze e meia, afinadíssima forma de oração.

Sempre gostei de varandas – palcos de luz para as antecâmaras da intimidade. Quando era pequena e acompanhava a minha avó à charcutaria Diplomata, fascinavam-me as varandas redondas que contornavam a esquina da Av. João XXI com a Av. de Roma. Tudo me parecia equilibrado. E os grandes volumes que adornavam o cruzamento da Av. de Roma com a Av. dos E.U.A., por onde passava regularmente, tornavam-se leves com as suas inúmeras varandas de grelhas, muito regulares, na cadência certa.  Nessa altura ainda não sabia que a minha infância seria o tempo privilegiado das varandas.

Já adulta, passava quase diariamente pelo mesmo cruzamento, porém com outra vista. Era o tempo das marquises. Vivia então no Bairro das Estacas. Construído nos anos cinquenta pelos arquitectos Rui Jervis Atouguia e Sebastião Formosinho Sanchez, um exemplo premiado do urbanismo moderno. Ali foram concretizados os postulados da Carta de Atenas de 1933: a luz, o ar e o espaço constituíram-se matéria prima do desenho urbano. A ideia de quarteirão fechado foi substituída por prédios sem frente nem traseira implantados num jardim. Quando cheguei ao bairro, apesar de viver num apartamento recuperado com respeito pela arquitectura original, este já não era o bairro premiado – o espaço entre as estacas fora ocupado por construções ilegais e garagens de improviso. Os espaços ajardinados e pedonais, tão bem pensados pelo arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, estavam degradados. Com excepção de um ou outro bloco, as marquises ocuparam as varandas, as grelhas de betão foram fechadas. O projecto original de habitação económica de promoção pública estatal, foi rasurado pela classe média desejosa de aumentar a sala e recusar a relação com o exterior. O que fora uma forma de repensar a cidade e o modo como a habitamos, numa relação constante com o exterior, espaço comum onde se consegue ancorar o que é a vida de bairro, havia desaparecido.

Quem fecha a marquise não o faz só para ganhar dois metros quadrados de sala: fá-lo para romper com o exterior, para se encastelar. Não quer saber de quem vive ao lado, nem do espaço público, nem do património comum. Cristiano Ronaldo, como milhares e milhares de outros, não faz mais do que seguir o exemplo presidencial das marquises espelhadas de Cavaco Silva na Travessa do Possolo.

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