Tudo começou em São Francisco, como seria de esperar. Em 2015, Michelle Tea resolveu juntar Drag Queens em bibliotecas públicas e pô-las a ler livros infantis a crianças entre os 3 e os 11 anos de idade. O programa, obviamente voluntário, foi um sucesso em alguns meios progressistas americanos (liberais, como se diz por lá) e uma provocação para muitos conservadores. A maioria das pessoas, obviamente, não ligou nenhuma. O normal. Até que saltou dos circuitos locais e se tornou a questão central na discussão entre dois conservadores cristãos americanos no verão de 2019. E continua.

De um lado, David French, cristão evangélico, reconhecido jurista e a certa altura eventual candidato contra Trump; do outro, Sohrab Ahmari, americano de origem iraniana, recém convertido ao catolicismo, editorialista do New York Post e apoiante de Trump. O pretexto para explorar a divergência entre ambos: o programa das Drag Queens em bibliotecas, precisamente. Mas a conversa vai mais longe.

Para Ahmari, o conservadorismo está sob ataque, há uma guerra cultural em curso e é preciso seguir a estratégia de Trump e derrotar o inimigo sem contemplações. Não há convívio possível no espaço público. David French, mais velho, um cristão e conservador há mais tempo, diz que o espaço público tem de ser neutro e pode acomodar diferentes versões compatíveis com a liberdade de cada um. Sem surpresa, Ahmari acha French um fraco.

Segundo a enorme maioria dos observadores, em Setembro de 2019, French “limpou o chão com Ahmari” durante um debate organizado pela Universidade Católica Americana, em Washington D.C.. Mas segundo vários analistas, isso não alterou a realidade. O partido de Trump prefere o discurso de Ahmari e o eleitorado de Trump revê-se nesta visão dividida do mundo. De um lado, eles; do outro, nós. E isto é guerra. Nos próximos tempos, é este o conflito que vai varrer o Partido Republicano.

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Trump concorreu, governou e perdeu, convencendo os eleitores de que a América e os americanos só tinham inimigos. Os externos, que eram quase todos os países do mundo, em particular a China, toda a Europa, começando pela Alemanha e o que mais houvesse, à excepção de Israel, o Reino Unido de Boris Johnson (e uma bizarra indiferença em relação à Rússia). E, internamente, a mesma coisa. O espaço político para lá da fronteira do universo Trump era povoado por inimigos tenebrosos. A esquerda radical estava em toda a parte. Tudo era esquerda radical. Ou traidor. Os que eram, de facto, e os outros todos. Incluindo os que eram do seu partido mas divergiam, como aconteceu nas últimas semanas, quando já é difícil ser-se, simultaneamente, sério, informado e alfabetizado e duvidar da vitória de Biden.

Trump foi o segundo candidato presidencial mais votado de sempre. Só não ganhou, porque Biden teve mais votos. Pode não parecer, mas há mais do que La Palice nisto. A derrota de Trump com tantos votos mostra que o seu discurso teve eco nos eleitores e que o ainda presidente conseguiu parte do que queria: dividir a América em duas partes eventualmente irreconciliáveis. Joe Biden, no entanto, conseguiu convencer a maioria de que não era isso que estava em causa. Veremos.

Na Europa, com as diferenças expectáveis, como explicariam no Pulp Fiction, o problema também existe.

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Órban, e o de facto líder da Polónia, Jaroslaw Kaczynski, juram que a Hungria e a Polónia estão a travar uma batalha contra, conforme os casos, a invasão de Bruxelas, os imigrantes, os homossexuais e a elite globalista. O costume. Quem discorda, é aliado dos radicais.

O problema deste discurso, ou a vantagem na perspectiva de quem o faz, é que os inimigos (por assim dizer) e os radicais existem e a fronteira assim traçada é definitiva e fatal. Acontece que não é verdade que sejam os radicais (e os outros todos) quem manda. Pelo menos, certamente, não em tudo.

O facto de Bruxelas decidir segundo Tratados que estes países aceitaram e através de processos em que participam, de ninguém impor a ninguém práticas sexuais indesejadas, de não haver invasões de imigrantes, de haver progresso que só a globalização permitiu, nada disto os comove e demove. A história que contam precisa de inimigos e de uma guerra absoluta.

Por cá, a mesma conversa vai fazendo caminho. Há quem, à direita, alimente um inimigo real ou imaginário, conforme os casos, querendo convencer os eleitores de que o país está dominado pelo PCP e o Bloco de Esquerda, que são eles quem manda no país e é com eles que a Direita está em guerra política e cultural profunda e definitiva. Enquanto isso, o PS ganha as eleições e governa. Condicionado, mas governa sozinho.

A obsessão à direita com os partidos à esquerda do PS é um favor que fazem ao partido no governo. Por mais que digam que o país está subjugado à agenda radical bloquista ou comunista, os eleitores sabem que quem governa é o PS. Se algum dia quiserem castigar Costa, votarão numa alternativa. Se não, se for para evitar o Bloco e o PCP, podem votar PS. Que é o que fizeram no Continente em 2019. Pelo contrário, nos Açores, foi por quererem castigar o PS que votaram PSD.

Enquanto a estratégia à direita errar o alvo, a maioria dos eleitores do centro, que são os que poderiam tombar para a direita, continuarão a votar PS. Achar que isso se compensa com os saudosistas, os ultraconservadores e os pobres trânsfugas dos subúrbios em vez de apresentar uma alternativa, é desistir da política e sonhar ganhar a guerra ideológica. Ou, dito de outra maneira, longos anos na oposição. Enquanto se contribuiu para dividir o espaço público até ao limite do frequentável.

Henrique Burnay (no twitter: @HBurnay), consultor em assuntos europeus, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Madalena Meyer Resende, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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