De um lado, temos Boris Johnson, do outro o Guardian. Johnson, candidato à liderança do Partido Conservador, pode ser o próximo primeiro-ministro do Reino Unido e foi um dos promotores do Brexit. O Guardian é o jornal de referência da esquerda britânica e defende a opção de ficar na UE. Por isso, o Guardian, nos últimos dias, sentiu que tinha o direito de publicar fotos do interior do carro de Boris Johnson, e depois as gravações que uns vizinhos fizeram de uma discussão que Johnson teve dentro de casa com a sua namorada. Esses vizinhos parecem ser esquerdistas que já tinham insultado Johnson na rua. Desta vez, mal ouviram discutir, chamaram a polícia e, inspirados talvez pelo agente da Stasi do filme A Vida dos Outros, fizeram a gravação, que passaram imediatamente ao jornal. O Guardian não hesitou em publicar. Métodos de pasquim intrusivo, como os que desacreditaram alguns tabloides britânicos há alguns anos? Segundo o Guardian, é o “interesse público” que manda saber, por quaisquer meios, se Johnson aspira o carro ou levanta a voz em casa.

Todas as semanas, o Guardian tem artigos exaltados sobre Trump, as redes sociais, e, desde que consta que Trump é amigo de Putin, a ameaça russa. São, segundo o Guardian, os problemas da democracia. Talvez sejam, mas esta história mostra que não são os únicos. O Guardian não quer construir muros na fronteira, não é uma invenção de Mark Zuckerberg, nem – tanto quanto sabemos — um instrumento de Putin. Mas não se importa de publicar fotos do interior do carro de um político, para insinuar que é desarrumado, ou dar conta das discussões que, dentro de casa, tem com a sua namorada, para deixar no ar a suspeita de violência doméstica (embora a polícia não tivesse detectado mais do que uma querela trivial). Porquê? Porque esse político representa opções de que o jornal não gosta, e, portanto, contra ele tudo é legítimo, incluindo a violação da privacidade e sugestões malévolas.

Boris Johnson não será um santo. Mas perante Johnson, tal como perante Trump, o jornalismo de esquerda parece sofrer do complexo de Nixon. Nixon convenceu-se de que os seus inimigos faziam jogo sujo: só por isso, segundo ele, teria perdido as eleições em 1960. Daí que, quando chegou à presidência, em 1969, tivesse decidido também ele jogar sujo. É o álibi do costume para qualquer abuso: todos, antes de serem indecentes, têm o cuidado de se persuadir de que os seus adversários estão a fazer o mesmo, e de que portanto vale tudo.

Não, o problema não são só Trump e as redes sociais. Também não é só o jornalismo de esquerda, aliás: os rivais de Johnson na eleição do Partido Conservador aproveitaram logo a boleia do Guardian para minar o seu favoritismo. O problema é de quase toda a gente, embora seja sempre mais fácil vê-lo nos nossos adversários.

Os consensos do pós-guerra fria romperam-se perante a recessão de 2008, a crise das migrações de 2015 e o declínio do Ocidente. Voltámos a discutir a política como se tudo o que é fundamental estivesse em causa. No Reino Unido, a esquerda acredita que Johnson quer fazer do país uma Singapura em ponto grande, e a direita acusa Corbyn de sonhar com uma Venezuela europeia. E provavelmente, tudo está mesmo em causa, mas não como os políticos dizem, isto é, só porque haja outros políticos a conspirar. De facto, os constrangimentos financeiros e sociais do Ocidente dificultam mudanças radicais em qualquer sentido, como Boris Johnson, a propósito do Brexit, já admitiu. O declínio é um risco maior do que a revolução. Mas talvez por isso, para de algum modo compensar a impotência, a política fez-se mais facciosa e desregrada. Não é a primeira vez: também foi no fim que os bizantinos mais se engalfinharam por causa do sexo dos anjos.

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