Independentemente da posição que cada um tenha relativamente à eutanásia, todos seguramente reconhecemos que a decisão sobre o direito de cada um dispor do seu próprio corpo, da sua própria vida, o direito de reclamar uma morte, terá um impacto profundo em qualquer sociedade. Esta é uma matéria que suscita questões muito complexas sobre o valor da vida, tal como ele é reconhecido hoje, e em torno de como uma sociedade o concebe, garante e protege.

Embora seja verdade que a eutanásia não se confunda com o suicídio assistido, já não é verdade que a alternativa à eutanásia seja o prolongamento artificial da vida. Há uma grande diferença entre a eutanásia e o direito a morrer dignamente. Com efeito, não se pode confundir o prolongamento artificial da vida, com o dever dos profissionais de saúde de lutar contra a doença e o tardar o mais possível a morte, embora, sem a obstinação de terapêutica sem esperança (a distanásia).

Na eutanásia não há apenas a combinação de duas vontades: a vontade da pessoa que pretende exercer o direito de dispor da sua própria vida, e a dos profissionais de saúde que assistem na concretização dessa vontade. É verdade que sem essa conjugação de vontades não há eutanásia, contudo, esta não é uma questão que possa ser simplesmente resumida a uma relação entre estas duas vontades. Não se trata apenas do exercício individual do direito de uma pessoa sobre si própria, o que se traduziria no suicídio, ou de apenas precaver o direito de não auxiliar no exercício dessa vontade. Subjacente está a percepção que a sociedade tem sobre o direito de cada pessoa dispor sobre a sua própria vida, e sobre a intervenção da sociedade na concretização desse direito. Uma questão tão complexa como a eutanásia não se resume aos argumentos que o que está em causa é a liberdade de decidir quando morrer, ou que ninguém é obrigado a escolher a eutanásia ou de auxiliar quem queira exercer essa escolha. Por outro lado, o ser contra a eutanásia não é ser a favor do sofrimento ou de uma morte que não seja digna.

O que está em causa fundamentalmente é saber se a sociedade entende que existe o direito de uma pessoa de dispor da sua própria vida, e de como o mesmo deve ser consagrado e exercido. Ora, ninguém pode afirmar que há neste momento um consenso em torno de qualquer uma destas matérias. Daí que é preciso tempo. Tempo para refletir e tempo para decidir se estamos preparados para alterar a forma como concebemos, garantimos e protegemos o direito à vida. Sem tempo, sem uma reflexão e sem uma decisão ponderada não haverá reconciliação da sociedade com uma decisão tão significativa. Para isso é necessário que os partidos primeiro esclareçam e assumam a sua posição sobre a matéria, antes de se submeterem a votos na próxima legislatura. Sem esse esclarecimento, não há mandato para decidir.

Doutorado em Direito, prefessor convidado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e investigador do CEDIS – Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade

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