A Europa da União Europeia só existe porque os Estados Unidos da América e o Reino Unido nos deram a vitória na IIª Guerra Mundial. Por mais voltas que se dê, e por muitos outros factores que tenham contribuído para a vitória aliada, primeiro, e para a criação da “Europa”, depois, o papel de Britânicos e Americanos é inegável. E o facto de estarem afastados de nós, um problema.

Depois, durante a Guerra Fria, foi o artigo 5º da NATO e a garantia de que os Estados Unidos interviriam em caso de necessidade que nos deixou dormir descansados. Quando o muro caiu e provisoriamente se acreditou que ia ficar tudo bem, ainda houve quem considerasse que a NATO se tornara irrelevante. Mas não aconteceu. A NATO era a aliança dos vencedores. Era mais do que um pacto militar que assegurava a protecção do Ocidente contra os soviéticos, era o eixo da relação transatlântica, a promessa de que o Ocidente era uma coligação que vencera e perdurava. E continuou a ser, para muitos, desde logo para os países bálticos e os da Europa Central e de Leste, a garantia de que os russos pensariam duas vezes antes de considerarem reconstruir o Império (para os vizinhos da Rússia, a União Soviética era uma expressão renovada de um problema antigo). Daí que todos os países da Europa Central e de Leste que aderiram à UE em 2004 e 2006 tenham entrado primeiro na NATO. Uma aliança pressuponha a outra. Ser membro da Europa não dispensava, pelo contrário, ser membro da coligação transatlântica.   

Com o passar dos anos, a percepção de ameaça mudou profundamente. A Rússia frequentava o quartel-general da NATO, em Bruxelas, não como parceira, mas também não como inimiga. As ameaças reais do terrorismo islâmico convenceram os Europeus que o problema de segurança que agora tinham era outro. E a Primavera Árabe falhada arrumou a expectativa ingénua de que a relação com o Sul e Leste do Mediterrâneo pudesse ser entre países (potencialmente) democráticos, ordeiros e prósperos. Não foi nada disso que aconteceu. À nossa volta não houve paz nem prosperidade, mas o perigo não tinha nada que ver com o perigo soviético.

Tudo isto interessa porque explica em que medida o que está a acontecer no Afeganistão pode ser um ponto de viragem. Ou, pelo menos, será invocado por quem quer uma revisão das estruturas e alianças que tratam da segurança europeia. Mas também importa para recordar que qualquer alteração será uma grande novidade. A Europa não toma conta de si desde que há paz. E antes, quando tomou, houve guerra.

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Tudo isto importa, de novo, porque a ausência americana pode querer dizer uma de duas coisas distintas: ou os Europeus acreditam que não é necessário o uso da força em países terceiros para a Europa viver em paz e com segurança e, nesse caso, basta ter muito dinheiro e promover muita cooperação e desenvolvimento e depois esperar que tudo corra bem; ou amanhã pode ser necessário intervir externamente em nome dos interesses europeus, da segurança dos europeus, e os americanos podem não estar disponíveis. O que fazer, então?

Apesar de os Estados Unidos saírem do Afeganistão em fuga, com ar de derrota, a verdade é que os Americanos ganharam a sua “war on terror”. Desde o 11 de Setembro que não voltou a haver ataques em solo americano nem parece expectável que haja. Já os Europeus, apesar da presença no Afeganistão, não podem dizer o mesmo. Não têm estado livres de ataques e não têm conseguido ser eficazes a castigar e a aniquilar quem os promove. Quando o foram, foram-no com o auxílio e a liderança americanos.

A questão não é, portanto, hipotética. A ideia de que os Europeus podem ter de tomar conta da sua segurança não é uma especulação militarista, uma vontade de fazer a guerra. Para evitar exercícios teóricos muito distantes, pensemos no Estado Islâmico, que resultou do espaço livre deixado pela saída dos Americanos do Iraque e que, além de atacar ali, atacou na Europa (em Paris e em Bruxelas, por exemplo). Foi o esforço militar liderado pelos Americanos que assegurou a sua derrota. Os Europeus estariam dispostos a fazer esse esforço se fossem a primeira e última linha de combate externo? Se tivéssemos de financiar o esforço, garantir a eficácia e oferecer os homens, estaríamos preparados? A ideia de que a Europa deve cuidar de si, ter um exército comum, autonomizar-se dos Estados Unidos pode ser estimulada e promovida por esta retirada em fuga dos Americanos, sem solidariedade nem coordenação com os aliados europeus, mas sentir essa necessidade não equivale a estar preparado nem disponível para a exercer. Nem sequer prova que fazê-lo autonomamente, à margem dos Estados Unidos, seja a melhor maneira. Essa vai ser uma das grandes discussões europeias nos próximos tempos.

Josep Borrell, que tem dado a cara pela Europa nesta crise, falando com firmeza, clareza e transparência, veio dizer que o próximo problema pode ser no Sahel ou no Iraque e que o melhor é a União Europeia vir a ter capacidade para despachar uma força expedicionária de 50 mil homens (que é bastante mais do que uma força de intervenção rápida, convenhamos).

Os Estados-membros da União Europeia já colaboram em acções militares, mas a União Europeia não tem nada que se pareça com o começo de uma força militar própria. Será que deve ter, ou deve explorar o braço europeu da NATO? O argumento de que a NATO e a UE não coincidem é real. Dos 27 Estados-membros da União Europeia, apenas 21 são membros da NATO. Mas convenhamos que não há-de ser a força ou disponibilidade militar da Áustria, Chipre, Finlândia, Irlanda, Malta ou Suécia que vão fazer a diferença. Pelo contrário, ter ou não ter os Britânicos é capaz de fazer bastante mais diferença.

Henrique Burnay (no twitter: @HBurnay), consultor em assuntos europeus, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Madalena Meyer Resende, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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