Todas as mulheres já devem ter passado por momentos em que se repara que o cérebro do homem com quem se conversa (socialmente, em trabalho, estes momentos não se fazem esquisitos) deixa de funcionar. Fica demasiado distraído a olhar para o decote (especialmente se tiver algum indício de cleavage – e os wonderbra são instrumentos letais para a exibição da inteligência ou eloquência masculinas) ou para as pernas (sobretudo se estiverem pouco cobertas e assentes nuns saltos altos) e esquece-se de manter o fio condutor do raciocínio. Ou o objetivo passa de mostrar a lógica dos argumentos para tocar amigavelmente, no meio do gesticular, na mulher com quem fala. Há casos em que estes comportamentos são ofensivos – o toque pressupõe intimidade que é inexistente ou o senhor faz questão de exibir a opinião de que a mulher com quem interage é só o decote ou as pernas – mas na grande maioria das vezes são inofensivos, divertidos e, até, elogiosos. (De resto, às mulheres também acontece).

Claro que é mais estimulante (e enternecedor) quando a resposta masculina à admiração pelo feminino é a tentativa de nos impressionarem (pela sapiência, beleza, proeza física, status, fortuna – aquilo em que o homem se sentir mais dotado). E no topo há aquela classe de homens – a que eu chamo os grandes elogiadores – que têm uma verdadeira mestria a elogiar mulheres. (Um dos dons mais subvalorizados da história da humanidade.) Elogiam abundantemente, sempre com gosto e doses certas de admiração e atrevimento. Neste caso, o elogio é mesmo uma questão de respeito. Não o respeito puritano, mas aquele que sentimos por alguém que tem uma qualidade que muito valorizamos.

No reverso insultuoso e exasperante das relações entre os sexos temos sermos ignoradas – ou não se dão ao trabalho de reagir (por uma mulher? porquê?), ou desvalorizam o que dizemos e produzimos, ou lembram-nos que somos subalternas de uma hierarquia superior masculina (afinal, a ordem natural das coisas, não é?). E, pior, na estratosfera ofensiva há as ameaças de morte e violação, eventos agradáveis que por estes dias ocorrem frequentemente na net envolvendo sobretudo mulheres opinativas (as mulheres a terem e proferirem opiniões, onde é que isto vai parar?). Algo que se pode com propriedade caracterizar como um curto-circuito cerebral masculino. Mas em ainda mais perigoso.

Dou um exemplo. A feminista Caroline Criado-Perez e a parlamentar Stella Creasy, britânicas, propuseram Jane Austen para figurar na nota de 10£ que vai circular a partir de 2017 e o Banco de Inglaterra gostou da ideia. Claro que toda a gente pode opinar sobre a escolha de Austen – ou de óvnis roxos – e a internet, os deuses a conservem assim, dá guarida a pessoas que têm opiniões ferozes sobre os assuntos mais diminutos. Mas como durante esta discussão havia cérebros sem os circuitos ligados e gente que, porventura, não toma os remédios, apareceu quem ameaçasse as ditas senhoras informando-as que as violariam e bombardeariam as suas casas. Como as mulheres, é sabido, são muito dadas ao exagero, queixas foram apresentadas e por estes dias corre o julgamento de uma encantadora criatura que se refere às suas ameaças como ‘sátira’, ‘brincadeira’ e – vejam bem – ‘um elogio’. Contem lá se dizer a uma mulher ‘vou-te violar’ não é sucedâneo de declaração de amor eterno?

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Mas este não foi caso único, longe disso. Há poucos dias Anita Sarkeesian, autora americana de um videoblog, criticou a violência contra as mulheres nos videojogos e foi também presenteada com elogios eloquentes em forma de ameaças de violação e morte, a ponto de ter de sair de sua casa e ir refugiar-se com amigos.

Evidentemente ameaçar com violência outra pessoa é um crime, não é liberdade de expressão. Pode-se aventar a possibilidade de estas criaturas encantadoras serem apenas, chamemos-lhes assim, violadores e assassinos de sofá. Em todo o caso não é muito seguro confiar no discernimento e na contenção de quem considera que a imagem de uma nota de 10£ ou uma crítica a um videojogo merece elogios de estirpe serial killer.

E de qualquer forma isto vai além do problema criminal. Se uma mulher é assertiva ou tem a suprema ousadia de defender um resquício de aroma de feminismo (se é que assim se pode caracterizar o magno debate da nota de 10£), há brinde de conversas de assassinatos e violações. Além da falta dos comprimidos diários, é sintoma de algo feio e doentio. Eu conto: tem o mesmo fundo dos ataques com ácido às indianas (e não só) ou das vergastadas às sauditas se andam na rua sem escolta familiar masculina.