Nunca fui fã de filmes ou séries de televisão “hospitalares”, isto é, passados em hospitais e tendo como protagonistas médicos, enfermeiros e doentes; mas fui casado quase quarenta anos com uma mulher que era. Talvez porque, como cristã, se quisesse tornar próxima do próximo, e o sofrimento humano (e a forma de aliviar e superar) lhe parecesse uma circunstância privilegiada para sentir e exercer essa proximidade; ou porque, na vida profissional – no Ministério da Saúde, na Maternidade Alfredo da Costa e como Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa –, tivesse de lidar diariamente com esses mundos.

Era, por exemplo, uma aficionada do Dr House, recriado por Hugh Laurie, e da Anatomia de Grey, a série da Fox em que Ellen Pompeo encarna a personagem Meredith Grey.

Na negociação cerrada do que íamos ver na televisão – e do que cada um queria e não queria ver – ela ficava, para ver sozinha, com as séries hospitalares, de tribunais ou policiais, tipo Agatha Christie, e eu com os clássicos a preto e branco, as cowboyadas, as superproduções, os filmes de terror. Felizmente, no meio, para vermos os dois, havia a maioria das fitas e das séries – históricas, épicas, de espionagem, de guerra.

Mas porquê este fascínio generalizado pelas ficções hospitalares e porquê o fascínio da ficção pelo “hospital”?

Talvez por ser um lugar estranho e extremo, um lugar fechado, com a morte e a vida no horizonte, o lugar da “dor absurda e desmedida”, como queria Sophia de Mello Breyner, ou da “doença crua e feia”, como queria Camões, mas também o das “grandes constipações”, como a de Álvaro de Campos, que, por nos afectarem directa e pessoalmente, “alteram todo o sistema do universo”.

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Porque se o hospital é um lugar extremo e trágico é também um lugar de pequenas e médias alegrias e tristezas, onde a natureza humana, sempre frágil e sempre capaz do melhor e do pior, se vê encerrada, como que “sitiada”, para ser testada na trivialidade diária ou no limite da vida e da morte, da esperança e da desesperança, da superação, da ciência, da impotência, do milagre.

Como todo o cidadão já com alguma idade fui, ao longo da vida, conhecendo hospitais, públicos e privados. Por males mais graves e menos graves, próprios ou dos que me são próximos. Visitei também hospitais de campanha na África das guerras civis, no mato, e nas cidades carentes de tudo, onde médicos, enfermeiros e “irmãs” equilibravam com engenho e qualidade humana o que ali faltava: máquinas, equipamentos, até remédios e até soro e seringas.

Foi destes hospitais que me lembrei quando, na quinta-feira, 2 de Agosto, fui parar às urgências de São José e me vi estendido numa maca sem nada para ler nem para fazer, a não ser esperar, com alguma ansiedade, pelos exames e pelos resultados dos exames. É que todo o hospital, por mais bem equipado e por menos carente de tudo, é sempre um hospital “de campanha”. Ou assim nos parece, quando vamos lá parar. Há sempre um caos, ainda que organizado, e meandros e desfechos imponderáveis, que nos lembram que não estamos longe das antecâmaras da morte ou dos limiares da ressurreição de que nos falam os livros, os filmes, as séries e, muitas vezes, a vida – que também nos ensinam que, por melhores que sejam os planos (e o de Romeu e Julieta era bom) e por mais competentes que sejam os profissionais (e o Boticário que lhes preparou a poção era talentoso) o destino pode sempre trocar-nos as voltas.

Foi assim que, no passado dia 2, quando a canícula anunciada reagiu sobre o stress empresarial, me vi na charola do INEM a caminho do São José, directamente do restaurante, perto do escritório, onde acabava de almoçar. Pessoal competente e viagem acelerada (que me recordou uma dessas histórias da lusitana bravata, ouvidas na adolescência, que a única vez que o grande automobilista Juan Manuel Fangio tinha tido medo de andar de automóvel fora num táxi lisboeta). Chegado às urgências e devidamente “triado” (coube-me uma fita amarela) lá me levaram de padiola para uma sala, algures entre um pavilhão de hospital de campanha e uma enfermaria vitoriana.

Um caos funcional, foi a minha impressão primeira, perante os profissionais que por ali circulavam freneticamente em aparente desvario, como nas séries televisivas mas em modo mais caseiro.

Sem dores especiais, salvo uma réstia de enjoo, e posto a soro, fui observando aquele mundo à minha volta. Os néons a acender e a apagar, o calor, um ou outro velho que se queixava, o riso bem-disposto de uma auxiliar. Ali era o que sou, o Jaime, ou, quando muito, o senhor Jaime. Um jovem médico que se aproximou, pôs-se a adivinhar a minha idade. Ganhei anos de vida – mais precisamente doze.

E naquele claro-escuro da tarde de Agosto, agarrado seis horas à maca, fui mergulhando no lugar que é, para muitos, um cenário permanente. E pensei nos meus amigos – e tenho um muito especial – que lutam, num cenário assim, contra “dor absurda e desmedida”; pensei no luso-francês que, ao meu lado, se contorcia com uma cólica renal; e pensei naquele canto de Lisboa e do mundo e naquela trupe multicolor de médicos, enfermeiros e auxiliares que por ali se mexia com determinação e humanidade, dando conta do recado, com um sorriso ou uma graça, às vezes mais irritados, outras mais autoritários, debatendo-se com as muitas carências de tudo que vão atingindo o Serviço Nacional de Saúde, mas fazendo o seu trabalho com dedicação, com competência e – porque não dizê-lo? – com amor.

E assim, esquecendo os meus males e contrariedades naquela tarde de Agosto, pensei no privilégio de ali estar, em São José, onde a presença do Bem se ia impondo no meio do mal, onde a caridade, a compaixão e a eficácia superavam tudo o resto.

Saí às dez da noite. Lá fora, na noite de Verão, à porta das urgências, esperavam-me bons amigos, que ali tinham ficado de plantão para me levarem a casa. Outro privilégio.