Esta semana que passou foi marcada por várias polémicas. A figura de Marcelino da Mata é demasiado complexa para a uma visão simplista da história. E o recente golpe de estado na Birmânia, oficialmente designada Myanmar, é um evento distante, mas que nos devia importar. Quer Marcelino da Mata, quer a Birmânia mostram que a história eurocêntrica dos impérios que nos querem impor em nome do combate ao racismo não tem grande base nos factos nem nos ajuda a perceber o mundo como ele é.

Marcelino da Mata e as guerras da memória

Muito se escreveu sobre Marcelino da Mata nestes últimos dias, mas pouco se acrescentou. Ele é, em todo o caso, paradigmático de um processo importante e crescente de africanização do combate à guerrilha independentista que levou a que, em 1974, talvez mais de metade das forças portuguesas a combater em África para defender o último grande império colonial europeu fossem africanos.

Este é um dado particularmente difícil de digerir por aqueles que querem transformar as guerras coloniais tardias portuguesas numa espécie de IV Reich. É difícil defender a tese delirante de que estas campanhas possam ser comparáveis às campanhas de extermínio racial da Alemanha nazi, quando tantos africanos combatiam do lado português. Uma tese mais absurda ainda do que aquela que defende que os portugueses combateram sempre de forma exemplar. Na verdade, sabemos que este tipo de guerras de guerrilha no meio da população civil e sem linhas da frente claras, com combatentes com um estatuto legal ambíguo, é particularmente propício a crimes de guerra.

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Ao mesmo tempo é evidente que Marcelino da Mata não foi apenas mais um combatente que optou por ser africano e português. Uma opção ironicamente semelhante à do seu crítico Mamadou Ba. Um e outro terão certamente razões pessoais e contextuais para fazer essa opção pela nacionalidade portuguesa. Mas elas não afetam a legitimidade da opção tomada ou as consequências que daí devem resultar num estado de direito democrático. Nem Mamadou Ba, nem Marcelino da Mata podem ser condenados sem julgamento, nem sofrer penas que não sejam decretadas por um tribunal. Como líder militar Marcelino da Mata era claramente alguém com qualidades excecionais, por muitos que tivessem sido os seus alegados crimes. Foram muitas dezenas de milhares os africanos a combater do lado português nessas guerras coloniais (ou ultramarinas, os termos são virtualmente sinónimos), mas nenhum foi mais condecorado do que ele.

Aparentemente, há ainda quem não consiga perceber que um Estado pode honrar os seus combatentes sem que isso signifique glorificar a guerra em que combateram. O esquecimento das vítimas civis dos crimes de guerra dos dois lados é lamentável, mas também o é o esquecimento dos combatentes e dos seus sofrimentos. Os EUA não deviam ter homenageado John McCain porque combateu no Vietname, onde foi acusado de crimes de guerra? Qualquer comunidade política tem, claro, o direito de definir as suas regras sobre a sua memória pública. Mas numa democracia espera-se que elas sejam tolerantes e plurais. E só numa ditadura é normal impor-se uma determinada agenda politicamente correta à investigação e à publicitação da história. No Estado Novo isso passava pela imposição da glorificação de um império português sem pecados e de um colonialismo sem racismo. Hoje muitos parecem querer combater postumamente o Estado Novo seguindo o seu exemplo: impondo uma cartilha à história que passa pela redução absurda da complexidade da expansão portuguesa ou do colonialismo europeu a nada mais do que violência e escravidão, sinais de uma mácula supostamente exclusiva do Ocidente.

A Birmânia, o racismo e o imperialismo não-ocidentais

O que tem a Birmânia e o seu mais recente golpe militar a ver com tudo isto? Alguma coisa. No último milénio houve vários Estados birmaneses. Todos eles passaram por fases de expansão imperial no Sudeste Asiático, nomeadamente, aproveitando períodos de retração do poder imperial chinês. Foi assim, por exemplo, no século XVI, quando a Birmânia Toungoo ocupou grande parte da atual Tailândia e Laos, aliás, em ocasional aliança com os imperialistas portugueses que por lá andavam. A Birmânia perdeu a sua independência entre 1885-1945 na sequência de três guerras sucessivas com os britânicos. O ponto de partida desses conflitos foi a expansão imperial birmanesa no início do século XIX, que gerou uma crise séria nas fronteiras da Índia britânica, em parte resultado dos derrotados que aí se refugiaram e daí atacavam e eram atacados pelos birmaneses. Depois de 1948, o Estado birmanês novamente independente procurou manter o controlo de vários territórios ocupados maioritariamente por outros grupos étnicos. Vários destes foram uma fonte abundante de combatentes ao serviço do Império Britânico, inclusive durante a Segunda Guerra Mundial. Nomeadamente por verem em Londres, ilusoriamente, uma proteção durável contra os excessos do imperialismo birmanês.

Desde 1948 grande parte do interior e das regiões de fronteira da Birmânia é controlada por grupos armados ligados a essas comunidades, e que resistem ao poder central. Quando, em 2017, se iniciou um novo levantamento armado na região ocupada por uma dessas minorias, os Rohinga, que predominam na região de fronteira com o Bangladesh, o exército birmanês iniciou uma campanha violenta de contraguerrilha. Dela resultou a destruição sistemática e bem documentada de muitas povoações dessa etnia, a migração forçada de centenas de milhares e a morte de dezenas de milhares, culminando em acusações de genocídio.

Será este um caso de racismo e de imperialismo? Não tenham dúvidas de que alguns ideólogos da moda insistirão em reservar estas etiquetas apenas para os Estados Ocidentais. Ou atribuirão todos estes malefícios aos 60 anos de presença imperial britânica na Birmânia, mesmo depois de sete décadas de independência, várias delas passadas em isolacionismo deliberado. Este eurocentrismo anti-ocidental da moda, ironicamente, nega a grande parte do mundo qualquer real autonomia ou responsabilidade efetiva na sua história recente. E é evidentemente inútil para perceber o que se passa na Birmânia de hoje. Os líderes militares birmaneses que agora tomaram o poder que nunca tinham abandonado completamente, consideraram evidentemente dispensável manter o esforço de coabitação, iniciado em 2015 com a líder nacionalista civil Aung San Suu Kyi. Os biliões de ajuda do Ocidente para a democratização foram perdidos com as acusações de genocídio. E hoje o Ocidente tem cada vez menos peso nesta região, onde abundam alternativas interessantes – desde a China até à Índia, passando pelo resto da ASEAN. E até a mais distante Rússia se tem feito notar com grandes vendas de armamento. Veremos se ganham a sua aposta. O certo é que há muito mundo para lá do Ocidente e nenhum povo ou região tem o exclusivo dos crimes do mundo. É isso que torna a história tão interessante, complexa e inconveniente para quem quer fazer dela um instrumento político.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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