Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente da República ou é comentador político? Esta talvez seja das perguntas mais gastas dos últimos cinco anos, porque invariavelmente Marcelo procura ter um pé em cada função, apesar de inconciliáveis. Inconciliáveis, entenda-se, para quem tenha uma visão clara de sentido de Estado e separação de poderes. O que não sucede com Marcelo Rebelo de Sousa, que olha para a presidência como um pedestal de onde pode condicionar todos os tabuleiros políticos do país, usando do comentário como megafone para moldar as percepções e criar factos políticos, normalmente através do Expresso — a fonte oficial não-oficial de Belém.
A rotina repetiu-se esta semana. Marcelo partilhou a sua opinião sobre uma eventual recandidatura de António Costa às eleições legislativas de 2023, que deu manchete no semanário: “Marcelo convicto de que Costa sai”. Enquanto palpite, esta aposta a dois anos de distância vale zero. Mas a precisão em nada importa, pois este não era um comentário neutro ou uma análise inocente. Vindo da boca do Presidente da República, tornou-se o enquadramento político das batalhas partidárias dos próximos meses. Dentro do PS, com os eventuais candidatos a secretário-geral a meterem-se em bicos de pés. E, dentro do PSD, sugerindo que quem ganhar a liderança em 2022 terá uma chance de ascender a Primeiro-Ministro. Marcelo, na prática, lançou um apelo às armas que os adversários internos e externos de António Costa não terão deixado de escutar. E denunciou a sua própria ambição: Marcelo está desejoso que António Costa saia e quis incendiar as hostes dentro do PS e do PSD, como quem visa forçar um novo ciclo político.
Não vou ser eu a rejeitar a necessidade de um novo ciclo político — nos últimos anos, tenho sido muito crítico do Primeiro-Ministro e da actual liderança do PSD. Mas isso não significa aceitar como normal esta intromissão do Presidente da República na vida partidária de PS e PSD — em particular deste último, apelando pouco discretamente à união à volta de Paulo Rangel, mesmo que oficialmente sempre tenha dito que se manteria à parte. Aconteça o que acontecer no PSD e no PS, o Presidente da República não deve ser aceite como figura tutelar da República — uma espécie de “dono disto tudo” da política.
Igualmente importante, enquanto o Presidente da República e a classe política se entretêm com pequenas intrigas, o país continua silenciosamente com as suas instituições a apodrecer — o exemplo nestas autárquicas é a desavergonhada associação entre os autarcas do PS e o acesso aos fundos europeus. E, já agora, o país continua à espera de respostas a perguntas elementares, que em qualquer democracia madura já teriam obtido esclarecimento, algumas das quais já mencionei nesta coluna — por exemplo, onde estão os resultados dos eventos-piloto na Cultura e a que velocidade circulava a viatura de Eduardo Cabrita no momento do acidente fatal de Junho passado. Podemos juntar outras, nomeadamente à DGS, por exemplo, para que informe sobre o porquê de os recuperados da Covid-19 já só terem de aguardar três meses para serem vacinados, em vez dos anteriores seis meses — que indicadores científicos surgiram para que se reduzisse a metade este tempo? Nem uma explicação se conhece.
O ponto é este. Portugal é um país onde os cidadãos são tratados como crianças, onde ninguém responde ao essencial, onde as instituições políticas não são levadas a sério e onde o Presidente da República, em vez de exercer a sua influência para meter ordem nisto, gasta as suas energias a engendrar intrigas e jogos políticos. Enfim, se servir de consolo, Portugal é também o país onde, tal como Marcelo, todos têm uma opinião muito convicta sobre o que vai acontecer no futuro. Aqui vai a minha: não vai acontecer nada de bom.