Foi discutida há dias na Assembleia da República uma petição que pretende a legalização da prostituição, designada como “trabalho sexual”. Propostas nesse sentido têm sido apresentadas no âmbito político-partidário (do Bloco de Esquerda, da Iniciativa Liberal, da Juventude Socialista e da Juventude Social Democrata) e é de esperar que o sejam na legislatura que agora se inicia. Esta petição aparenta ser iniciativa de mulheres que se dedicam a tal atividade, embora, como sucede com outras iniciativas análogas, os seus críticos denunciem que, por detrás da proteção dessas mulheres se esconda um objetivo primordial de defesa dos interesses do proxenetismo, isto é, de quem explora a prostituição exercida por outrem. Na verdade, não há notícia, contra o que é habitual no âmbito laboral, de conflitos entre este tipo de organizações, supostos “sindicatos” de mulheres que se dedicam à prostituição, e os proxenetas seus “empregadores”.
Um sinal de que assim é, descobrimo-lo na proposta dessa petição de obrigar a exames médicos periódicos das mulheres que se dedicam à prostituição. Esses exames poderão prevenir a transmissão de doenças dessas mulheres para os seus clientes, mas não destes (obviamente não sujeitos a qualquer exame) para elas. Assim se protegem os clientes e o “negócio” do proxeneta, não essas mulheres.
A prostituição é, sempre, uma violação dos direitos humanos e uma afronta à dignidade da pessoa humana. Não há uma prostituição “benigna” (que seria a prostituição legal, com salvaguarda da saúde e dos direitos laborais da mulher prostituta, por oposição à prostituição clandestina). Os malefícios da prostituição são algo que lhe é intrínseco. Não basta reduzir os seus danos, há que eliminá-los na sua raiz.
Eliminar o problema na sua raiz não depende essencialmente da ação policial ou judicial, depende, sobretudo, do apoio à reinserção social. É isso que faz, há mais de cinquenta anos, a associação católica “O Ninho”, de cuja mesa da assembleia geral sou, com muita honra, presidente. A ela se vem dedicando, há décadas, Inês Fontinha, a quem várias vezes ouvi dizer: «Nunca conheci uma mulher que me tenha dito; quero ser prostituta».
A prática da prostituição acarreta, com grande frequência, danos físicos e psíquicos que se distinguem dos que possam ser inerentes a qualquer outra atividade regular. A prostituição (legal ou ilegal) é sempre a instrumentalização da pessoa, a sua redução a objeto de uma transação comercial. Não pode equiparar-se a qualquer outra prestação de trabalho ou de serviços. A sexualidade não pode ser desligada da pessoa (porque a pessoa é um corpo, não tem um corpo que possa alugar como quem aluga um objeto de sua propriedade). Ora, quando a pessoa é reduzida a objeto, a violência e o abuso tornam-se expectáveis. Na prostituição, a pessoa é paga para fazer o que ela nunca faria de bom grado, ou outra pessoa nunca faria. É por isso que a prostituição é intrinsecamente “maligna”. O “cliente” da prostituição procura uma experiência de total controlo e domínio sobre outrem, não uma relação de reciprocidade e respeito. Reduzir uma pessoa a objeto é arrogar-se sobre ela os direitos que se têm sobre as coisas, mais do que os direitos que se têm no confronto com as pessoas. É por isso que a violência física e psicológica acompanha em regra a prática da prostituição, seja ela clandestina ou legal, e é por isso que a ocorrência de episódios de violência física ou psicológica aumenta (e não diminui, como se pretenderia) com a legalização da prostituição. Se essa violência é estrutural (e não ocasional), e se a legalização se traduz no incremento da prostituição, não pode esta deixar de se traduzir no aumento dessa violência.
Como tem sido salientado por especialistas, o exercício da prostituição conduz à dissociação entre “corpo e alma”, à tentativa de alheamento em relação a uma prática corporal que se considera não desejada e repugnante (como se a pessoa pudesse desligar-se do que pratica o seu corpo), com graves consequência no plano da estruturação da identidade pessoal. A ocorrência de stress pós-traumático é, nas vítimas de prostituição, mais frequente do que em militares que experimentaram cenários de guerra. Nelas é frequente a extrema dificuldade em vivenciar a sexualidade associada ao afeto e à comunhão pessoal. A autoestima é gravemente afetada[1].
A favor da legalização da prostituição, invoca-se a autonomia pessoal e a liberdade de escolha. No entanto, é na dignidade da pessoa (em que, de acordo com o artigo 1º da Constituição, se funda a República Portuguesa) que assenta a tutela da sua liberdade e, por isso, o consentimento do próprio nunca pode servir para legitimar atentados a essa dignidade. Não é admissível a escravatura, mesmo que consentida, a mutilação genital feminina, mesmo que consentida, ou o trabalho em condições desumanas, mesmo que consentido. A dignidade da pessoa humana, na célebre visão kantiana, impede que esta seja tratada (pelos outros ou por ela mesma) como meio e não como fim em si própria. A prostituição é certamente dos exemplos mais nítidos de redução da pessoa a objeto ou instrumento.
Por outro lado, é uma ilusão pensar que a prostituição pode ser, excluindo talvez poucos casos excecionais, fruto de uma escolha autenticamente voluntária. Não se escolhe essa atividade em alternativa a estudar Direito ou Medicina. A alternativa é, muitas vezes, a fome. Quando é a sobrevivência económica que está em risco, até a escravatura (que garantisse essa sobrevivência) poderia ser consentida. Na origem destas escolhas estão situações de acentuada vulnerabilidade, onde também se incluem a toxicodependência ou a ocorrência de abusos sexuais na infância e adolescência. Não é por acaso que, por exemplo, a grande maioria das mulheres que se prostituem na Alemanha provem dos países mais pobres da Europa de Leste. E – dizem-no vários estudos – cerca de noventa por cento das mulheres que se prostituem optaria por outra atividade se tal oportunidade lhes fosse concedida. Falar em liberdade de escolha nestas situações é fechar os olhos à realidade.
Não será sempre assim… Mas as situações em que não é assim são uma minoria, são a exceção que confirma a regra. E quando se legaliza uma atividade, é a regra que deve ser considerada, não a exceção. Legalizar a prostituição pensando nas poucas mulheres que a escolheram entre alternativas benéficas não é sensato, porque acaba por consagrar e consolidar uma prática que a maioria vive como uma opressão.
As experiências de legalização da prostituição (da Holanda e da Alemanha, designadamente) revelaram resultados negativos em todos os aspetos. Vários relatórios policiais holandeses e um relatório do governo alemão, de 2007, reconhecem vários desses resultados negativos[2]. E muitas das mulheres vítimas da prostituição consideram que beneficiários dessa legalização são apenas os proxenetas (que por ela se bateram), agora promovidos a “empresários do sexo”.
Desde logo, porque poucas foram as pessoas que celebraram contratos de trabalho ao abrigo da legalização (e a garantia de direitos laborais foi apresentada como uma das justificações para a lei). Várias são as razões para que tal tenha acontecido. Por um lado, porque quase nenhuma mulher quer registar no seu curriculum laboral o exercício da prostituição, como se este fizesse parte de uma carreira. Quase todas vêm tal exercício como uma ocupação temporária, que pretendem apagar e mudar o mais depressa possível, logo que surjam alternativas. Por outro lado, porque um contrato de trabalho não comporta apenas direitos, também comporta deveres. E é natural que se receie que, a coberto desses deveres, a mulher que se prostitui fique impedida de rejeitar um cliente ou qualquer exigência desse cliente.
A legalização da prostituição incrementou esta atividade em geral (como será lógico), tornando-a das mais lucrativas (na Holanda, os rendimentos respetivos correspondem a cinco por cento do rendimento nacional), e incrementou o tráfico de pessoas com esse objetivo. É um dado hoje reconhecido pelas polícias de vários países que as redes de tráfico se dirigem preferencialmente aos países onde a prostituição é legal (como a Alemanha), muito mais do que àqueles onde ela não o é, e ainda menos se dirigem aos que punem a atividade do cliente (como a Suécia, onde, logicamente, a redução da procura acarreta a redução da oferta). É compreensível que a atividade das redes de tráfico seja mais facilmente oculta ou encoberta em países onde a prostituição é legal do que naqueles em que toda a exploração da prostituição não o é. Isso mesmo resulta do estudo mais completo sobre a questão até agora efetuado, que envolveu cento e cinquenta países (de Seo-Young Cho, Axel Dreher, Eric Neumayer, em World Development, vol 41, 2013, pgs. 67 a 98 [3]). A legalização da prostituição abre e expande o mercado. E – demonstra-o a experiência policial – é ilusório pensar que há dois mercados paralelos, um de prostituição forçada e outro de prostituição “voluntária”, ou que é possível separar esses mercados.
Também por esses motivos, essa legalização não permite (pelo contrário) um mais eficaz combate à prostituição de menores. Também não há mercados inteiramente separados para a prostituição de adultos e a prostituição de menores. Uma percentagem muito significativa de mulheres começa a dedicar-se à prostituição ainda antes de atingir a maioridade. A prostituição de menores pode ser encarada, para este ramo de “negócio”, como um “investimento” que assegura ganhos futuros. E a legalização alarga o mercado e a potencialidade desses ganhos futuros. Por outro lado, não pode estabelecer-se uma barreira rígida, coincidente com a da idade da maioridade, para distinguir situações de prostituição “maligna” e voluntária ou “benigna”. Quando em anúncios de prostituição se publicitam os serviços de “jovens de dezoito anos” como chamariz para atrair clientes, é óbvio o perigo de por esta via se ocultar a prostituição de jovens menores de dezoito anos (e será assim tão diferente ter dezassete ou dezoito?).
À legalização da prostituição não podem deixar de estar associados um sinal e uma mensagem cultural provindos do Estado. Esse sinal e essa mensagem vão no sentido da aprovação dessa prática, ou, pelo menos, de indiferença perante os seus malefícios. Ao legalizar a prostituição, o Estado transmite uma mensagem de aceitação da comercialização do corpo humano e da sexualidade humana e, portanto, de aceitação da degradação da pessoa a objeto. Esta mensagem não pode deixar de afetar, em particular junto das novas gerações, a consciência social e cultural do valor da dignidade da pessoa humana, em especial da mulher. Há quem fale, a este propósito, em “cultura da prostituição”. Difundir a ideia de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer e fruto de uma escolha livre a respeitar desvia as atenções da comunicação social e da opinião pública em geral a respeito das violências de que são vítimas as mulheres prostitutas e das situações dramáticas que conduzem a essa prática. O contexto cultural que assim se cria não serve de incentivo à mobilização do Estado, da sociedade civil e da opinião pública no sentido do apoio à reinserção social dessas mulheres. Se está em causa uma escolha supostamente livre e se estão garantidos os direitos laborais, nada haverá a fazer no sentido do apoio à mudança de atividade.
No fundo, a legalização da prostituição mais não é do que a consolidação de uma velha mentalidade que se reflete em afirmações como «a prostituição é a mais velha profissão do mundo» (uma expressão que também usada na petição apresentada na Assembleia da República) ou que ela «sempre existiu e sempre existirá». Uma mentalidade conformista e nada progressista (na correta aceção desta palavra). Autêntico progresso social é, pelo contrário, aquele a que aspira o chamado “movimento abolicionista”, que luta pela abolição da prostituição como uma violação da dignidade humana. Nesse sentido abolicionista aponta o chamado “modelo sueco” de punição do proxenetismo e do cliente da prostituição, sem punir a pessoa que se prostitui e apoiando a reinserção social dessa pessoa. Este sistema, implementado na Suécia há mais de vinte anos, com sucesso na real redução da prostituição e hoje apoiado pela esmagadora maioria da população (na ordem dos setenta por cento)[4] vem sendo adotado por um número cada vez maior de outros países (Noruega, Islândia, Irlanda, França, Canadá e Israel). Também vai nesse sentido a recente proposta do atual governo espanhol. Expressão desse movimento abolicionista é a plataforma internacional Coalition against prostitution (www.cap-international.org), de que faz parte “O Ninho”.
Também a abolição da escravatura foi tida por utópica durante séculos (dela também se disse que «sempre existiu e sempre existirá»). Ninguém pensaria hoje em legalizar a escravatura. Não é descabido equiparar a prostituição à escravatura: uma e outra representam uma forma de “coisificação da pessoa”. Também não é, por isso, descabido equiparar o abolicionismo relativo à escravatura, do século XIX, ao abolicionismo. relativo à prostituição, do século XXI.
A versão inicial deste artigo foi publicada no portal No Barco de Cristo
[1] Ver os estudos de Michaela Huber e Ingeborg Kraus, divulgados em www.trauma-and-prostitution.eu
[2] Ver, por exemplo, Janice Raymond, Not a choice, not a job, Potomac Books, Washington, 2017, pgs. 79 a 120, e Julie Bindel, The pimping of prostitution, Palgrave Macmillan, Londres, 2017, pgs. 89 a 126
[3] Acessível em www.prostitutionresearch.com
[4] Ver, por exemplo, Max Waltman, “End Demand” Works; Evidence Shows, 2012, acessível em www.prostitutionreserach.com