A área da mobilidade vai assistir a uma verdadeira disrupção entre os próximos cinco e dez anos, muito provavelmente à semelhança das enormes transformações introduzidas pelo automóvel nas duas primeiras décadas do século passado. Mas de pouco valerá tentar antecipar o futuro se vislumbrarmos as possíveis mudanças sem perceber as alterações de contexto nas quais deverão assentar, ignorando o que a história tem demonstrado ao nível dessa mesma mobilidade.

Entre 1900 e 1920 várias inovações disruptivas chegaram às nossas cidades, com o motor de combustão interna a protagonizar uma das maiores mudanças nas sociedades de então, ao permitir a introdução do automóvel para uso individual. Num curto espaço de tempo o paradigma da mobilidade nas cidades (e fora delas) mudou, passando de um modelo baseado em cavalos e carroças para um modelo baseado no automóvel. As implicações foram massivas, não só no conceito de mobilidade e na própria indústria automóvel, mas sobretudo no nosso estilo de vida e na forma como as cidades passaram a ser organizadas.

O que há de fascinante neste tipo de fenómenos disruptivos é sobretudo o facto de resultarem da confluência de tendências em vários domínios (tecnológico, social, económico e legal) e de implicarem uma mudança descontínua, num curto espaço de tempo, transformando a forma como são resolvidos alguns dos nossos problemas do dia-a-dia enquanto consumidores. São períodos de oportunidades fantásticas para as novas empresas ganharem rapidamente uma dimensão relevante, embora sejam também alturas de risco para empresas incumbentes de grande dimensão, que se podem tornar irrelevantes em poucos anos.

Não nos faltam exemplos recentes de disrupção e a massificação dos smartphones é certamente uma das mais presentes nas nossas vidas. Ela não só alterou completamente o paradigma da indústria de eletrónica de consumo, da qual se reforçaram ou emergiram gigantes como a Apple, a Samsung ou a
Huawei, mas também da indústria da publicidade e dos media, sem esquecer a criação de massa crítica para o surgimento de grandes negócios como o Instagram, o Instacart ou a Uber e seus concorrentes.

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Olhando para estes factos recentes e cruzando-os com a história da inovação no último século, acredito que vamos assistir a uma disrupção na área da mobilidade nos próximos 5 a 10 anos, com implicações profundas não só na indústria automóvel, mas também nas indústrias relacionadas (serviços de manutenção, crédito para a aquisição de automóvel e seguros). No limite, as alterações a caminho voltarão a mudar a forma como as nossas cidades estão organizadas.

Mas para que estejamos preparados para aproveitar as vantagens esperadas com a transformação na mobilidade, as empresas e os governos não poderão tentar antecipar o futuro usando a mesma perspetiva que tínhamos no paradigma do passado. Por exemplo, pensar que quando existirem automóveis elétricos e autónomos em larga escala iremos todos continuar a ser donos do nosso próprio veículo, atestando-o de energia na nossa estação de serviço habitual, é uma forma falhada de olhar para a questão. Será também necessário pensar na segunda derivada da mudança tecnológica em curso e refletir sobre os impactos mais abrangentes da mobilidade elétrica e autónoma.

Para já, é relativamente fácil prever que os custos do Km por passageiro vão baixar drasticamente, que C0 2 emitido por km vai tender para zero, que o retalho automóvel vai praticamente desaparecer, ou que a indústria automóvel vai contrair de forma brutal, gerando desemprego a uma escala importante. Mas quais vão ser os efeitos de segunda ordem? Qual será o impacto no nosso estilo de vida, na forma como trabalhamos e interagimos com as nossas empresas? E no acesso às universidades e ao conhecimento, nas cidades e na forma estas estão ligadas entre si num contexto regional? Convém não esquecer de igual modo o impacto que terá nos preços do imobiliário, no retalho e na forma como consumimos, ou nas comunidades locais. E, já agora, o que significa e irá significar estar no “interior do país”?

Por estes dias fala-se muito sobre o impacto que a tecnologia e a inteligência artificial está a ter sobre a mobilidade, sem ganharmos uma noção clara do que poderá resultar desse impacto. Quando surgiu o automóvel, no início do século passado, era relativamente simples prever a sua massificação, mas não era nada fácil prever o aparecimento de negócios gigantescos como os hipermercados. Sabemos agora, olhando para esses dados e cruzando-os com as alterações económicas e sociais que a tecnologia tem introduzido, que nos próximos 10 anos vão surgir oportunidades fantásticas assentes num novo paradigma de mobilidade…

Resta apanharmos a boleia das soluções que já hoje nos surgem como inovadoras e mais eficientes, transformando os velhos paradigmas do asfalto em novas possibilidades de negócio. E pensarmos coletivamente como reaproveitar os milhões de pessoas na Europa que fazem da condução a sua profissão, e que vão ser forçadas a mudar de carreira e a aprender novas competências.

Ricardo Jorge é fundador e presidente executivo da YoYoLoop