Há cerca de três semanas quando a população portuguesa iniciou este (longo e difícil) período de quarentena, em conversa com alguns amigos e familiares próximos discutia esta necessidade de pormos os nossos conhecimentos, capacidades, disponibilidade ou simplesmente vontade de ajudar em prole daqueles que nos rodeiam.

Contudo este voluntarismo tende a cair, muitas vezes, em simples devaneios e planos ou até em iniciativas meritórias, mas distantes do esforço comum, por estarem desfasadas da realidade. Este desfasamento pode levar a uma criação de obstáculos ao bom funcionamento e abrangência de instituições e projetos já existentes que possuem o “know-how” suficiente para lidar com situações limite como esta de uma forma orquestrada e eficiente.

Apesar deste aparente beco sem saída e de sentir que não havia papel para que simples civis com vontade de ajudar dessem o seu contributo neste estado de guerra, decidi, em conjunto com um amigo e colega, inscrever-me como voluntário na “Rede de Emergência Alimentar” criada nesta altura pelo Banco Alimentar.

Como o General Ramalho Eanes explicava de forma muito clara na entrevista concedida à RTP no passado dia 1 de Abril existem duas linhas de ação na batalha contra a difusão da pandemia que atravessamos. O mesmo se pode dizer relativamente à batalha contra outra catástrofe que neste momento afeta um grande número de famílias em Portugal e no mundo – veja-se as filas de quilómetros nos bancos alimentares nos EUA: a Fome.

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A primeira linha, montada pelo Estado, não consegue, naturalmente, chegar a todos os que necessitam de ajuda. Os despedimentos são muitos, os trabalhadores que trabalhavam por conta própria e que se encontram agora sem qualquer meio de sustento são inúmeros, assim como os que subsistiam graças à ajuda de instituições de solidariedade social que, por falta de meios ou pessoas, fecharam as suas portas.

O Banco Alimentar percebeu que a situação rapidamente se tornaria insustentável e decidiu criar esta segunda linha de intervenção, a “Rede de Emergência Alimentar” a juntar à ajuda regular a mais de 400 mil pessoas. A ideia parece bastante simples, mas na verdade é complexa e revelou-se desafiante para aqueles que a ajudaram a montar: criar uma plataforma com todas as instituições de solidariedade social abertas no país e onde todas as pessoas que necessitam de apoio alimentar adicional neste tempo se registam. Deste modo, criou-se uma rede a nível nacional que liga famílias carenciadas a instituições apoiadas pelo Banco Alimentar ou outras que se queiram juntar a este esforço.

Os resultados após duas semanas de trabalho são impressionantes e falam por si: mais de 3100 pedidos de ajuda por parte de famílias dos quais mais de 50% já foram encaminhados para instituições, mais de 900 instituições mapeadas e registadas e cerca de 50% dos municípios do país com instituições representadas na rede.

Como seria de esperar, estas mesmas instituições não têm recursos nem estrutura para ajudar famílias extra por um período de tempo que se prevê longo. Assim, o Banco Alimentar para além de estabelecer esta importante ligação entre pessoas carenciadas e instituições, tem de servir de fornecedor de bens alimentares para a maioria dos casos e por vezes até de bolsa de voluntários para garantir a distribuição desses mesmos recursos alimentares.

O desafio é enorme e entrar de “paraquedas” nesta realidade foi muito estimulante e exigente. Perceber como me encaixar numa estrutura em construção e elaborar um projeto de otimização de tarefas e processos, com base em tudo o que aprendi ao longo de 5 anos de estudo e trabalho, e ao mesmo tempo ter a oportunidade de aprender tanto num tão curto espaço de tempo com pessoas tão dedicadas a esta causa tem sido fascinante.

Em tempos de mudança estrutural sobre a forma como a sociedade está construída, o medo e a incerteza tendem a paralisar tudo e todos, as palavras de Roosevelt em 1933 após a grande Depressão de 1929 assentam perfeitamente naquilo que se verifica nos dias de  hoje: “Let me assert my firm belief that the only thing we have to fear is…fear itself — nameless, unreasoning, unjustified terror which paralyzes needed efforts to convert retreat into advance” (em português “deixem me partilhar a minha firme convicção que a única coisa a temer é o medo ele mesmo, sem nome, irracional, terror injustificado que paralisa os esforços necessários que permitam converter a retirada em avanço”).

É minha firme convicção que o trabalho desenvolvido pela Rede de Emergência Alimentar está a ser um mecanismo fundamental para garantir a sobrevivência de milhares de portugueses e portuguesas e que vai de encontro àquilo que o Papa Francisco mencionou na sua homilia no passado dia 27 de Março sobre o sentimento de pertença a esta comunidade que é a humanidade (“Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.”)

Um claro desafio para a sustentabilidade deste projeto são os donativos de individuais e empresas que queiram apoiar esta rede coordenada e integrada de apoio aos mais carenciados, e que poderá ser feito através do site da mesma.

Ter tido a ousadia de arregaçar as mangas pondo os meus (ainda verdes) talentos a render em prole do meu próximo trouxe-me uma das experiências mais enriquecedoras, gratificantes e impactantes da minha vida.