No encerramento de um Congresso Nacional de um dos maiores partidos políticos da atualidade, o seu líder recebe uma ovação após ter proclamando que “todos os portugueses são cidadãos de pleno direito, onde ninguém é invisível, descartável ou visto como um fardo (…) e em cada um, está o nosso avô, o nosso irmão, estamos nós”.

Oiço as suas palavras, sinto o entusiasmo estridente na sala, mas (re) vejo, vezes em conta, os olhares dos mais vulneráveis, frágeis, sobretudo idosos, que permanecem de forma inexplicável e demasiadas vezes, esquecidos e amontoados, nos corredores das várias urgências, serviços e estruturas residenciais deste país. Serão avós, pais, irmãos, filhos de alguém, serão certamente “Nós” mas longe dos holofotes e ovações, invisíveis.

Lá, nos corredores, nas esquinas, atrás de biombos e cortinas, nas macas, em sofrimento, despidos tantas vezes do sentido de Ser são remetidos a um silêncio ruidoso. Lá, onde muitas vezes o último reduto da dignidade é o Enfermeiro.

O contexto atual de saúde tem significativas fragilidades, é um facto, com subdimensionamento e degradação de muitas das estruturas físicas e tecnológicas das unidades hospitalares e dos cuidados de saúde primários. Fragilidades sobretudo sentidas a nível dos recursos humanos, com dotações inseguras, excesso de horas laborais e níveis preocupantes de exaustão física e emocional dos profissionais de saúde, sobretudo dos Enfermeiros.

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(Nota: ACSS revela que os Enfermeiros, em 2023, fizeram cerca de 3,2 milhões de horas extraordinárias, de forma a sustentar a prestação de cuidados e indubitavelmente mitigando um problema de recursos humanos. Em Portugal temos neste momento um rácio, Enfermeiros por mil habitantes, de 7.1, sendo a média da OCDE de 8.8).

Faltam atualmente em Portugal 14 mil Enfermeiros, mas apesar deste reconhecimento da escassez e fragilidades inerentes, mantém-se uma exigência sobre o processo produtivo, sobre a eficiência e eficácia das intervenções. Indubitavelmente, apesar das necessidades serem identificadas, cuidados são priorizados em detrimento de outros, resultando numa prestação de cuidados incompleta ou mesmo ausente.

Sendo um importante indicador de qualidade, o problema desta “incompletude” e omissão de cuidados ganha complexidade maior quando assumimos, enquanto todo, que a responsabilidade do serviço nacional de saúde, é também garantir a qualidade, a segurança, a proteção da saúde, a igualdade e equidade de acesso com adoção de medidas de diferenciação positiva de pessoas e grupos em situação de maior vulnerabilidade, conforme explanado na Lei nº 95/2019 de 20 de agosto, que revogou a Lei de Bases da Saúde, nº 48/90 de 24 de agosto.

Há a assunção dos direitos constitucionais de proteção da saúde e dos deveres deontológicos, bem como o reconhecimento das necessidades dos utentes, mas na generalidade não existe disponibilidade efetiva para serem prestados cuidados de excelência e plenos.

Uma dissidência entre um ambiente ideal, seguro e protetor dos interesses próprios e dos utentes e um ambiente real, demasiadas vezes disfuncional e inseguro, é causadora de sofrimento moral, exaustão e omissão.

A omissão de cuidados, devido às contingências contextuais, aumenta não apenas o risco de burnout e despersonalização do profissional, mas também o risco de efeitos para o utente, como o são exemplo o aumento do tempo de internamento, as taxas de infeção associadas aos cuidados de saúde, a taxa de quedas, erros terapêuticos e a taxa de mortalidade.

A recorrência de condições contextuais adversas, por ser redundantemente frequente, não pode, de modo algum, ser banalizada ou constantemente associada a conjunturas epidémicas, sob pena de não serem previstas medidas e encontradas soluções.

Em boa verdade mantendo-se as condições para a omissão de cuidados, aquilo que deveria ser um desvio, pode torna-se um padrão, cuja aceitação tem consequências graves, a montante e a jusante, como a redução da qualidade e segurança de cuidados, a desmotivação, a insatisfação, o absentismo e o próprio abandono da profissão.

(Nota: Estudo nacional sobre as condições de trabalho dos Enfermeiros em Portugal revelou que os 65% dos Enfermeiros estão em exaustão e também 65% já pensou em abandonar a profissão. Estudo desenvolvido em parceria entre a Ordem dos Enfermeiros, Universidade Nova, Instituto Superior Técnico e Observatório, publicado em 2022).

Decorrente há uma tendência em priorizar cuidados diretos, considerando as rotinas e padrões, mas os Enfermeiros, por força das suas competências técnicas e científicas, devem assegurar cuidados globais, diferenciados e integrados, personalizados e centrados na Pessoa.

Pugnar pela dignificação dos cuidados e da Enfermagem urge, em favor da criação de valor em saúde, apenas possível se adequarmos objetivos e alinharmos estratégias e sobretudo equipas.

No mês em que se celebra o Ser Enfermeiro, deverá celebrar-se também a importância da centralidade, integração e humanização dos Cuidados. Aspetos que dificilmente serão garantidos, tendo por base um modelo hospitalocêntrico, centrado na doença e em atos médicos. Em boa verdade um modelo centrado na prevenção da doença, na promoção da saúde e sobretudo numa resposta integrada, promoverá mais e melhores respostas às necessidades de uma população cujo envelhecimento, doenças crónicas e dependências associadas, exigências e expectativas, são crescentes.

A gestão integrada e integral dos cuidados, com foco nas Pessoas, que cuidam e são cuidadas, prevê-se como promotora de uma saúde de proximidade onde se espera que, um dia, todos contem e ninguém seja verdadeiramente invisível.

12 de maio, Dia do Enfermeiro.