Vivemos tempos de mudança e de adaptação. A descoberta de uma nova realidade, que chegou sem que ninguém percebesse a sua dimensão, obrigou-nos a parar e a tentar compreender como podemos continuar a viver e de que forma devemos conjugar a nossa realidade familiar com as medidas agora conhecidas a vigorar no Estado de Emergência.

Numa época em que conhecemos diferentes configurações familiares, onde crianças crescem com Pai e Mãe a viver vidas separadas, onde crianças vêem regulado o exercício das responsabilidades parentais por acordo ou sentença judicial, onde crianças aprendem a adaptar-se a regras, horários e termos de visitas, são muitos os Pais que perguntam como devem, ou se devem, executar o acordo ou sentença judicial no que tange ao cumprimento dos regimes de visitas ou mesmo de residência, que implica o transporte e deslocação das crianças, pondo em causa o recolhimento domiciliário. A tais dúvidas, todas elas legítimas, e anteriores à publicação do Decreto do Conselho de Ministros, existia uma simples resposta: deve operar o bom senso. A ideia parece boa mas, na maioria das vezes, de nada serve quando falamos de casais em que a relação e o diálogo não opera e o jogo do braço de ferro parece não ter fim. Nem mesmo quando o que se pretende é proteger os próprios filhos, e as pessoas que as rodeiam, desta assustadora pandemia mundial.

Com efeito, e no combate da epidemia da doença Covid-19, mostrou-se urgente adoptar medidas essenciais, necessárias e adequadas para restringir determinados direitos – muitos dos quais desde sempre foram por nós dados como adquiridos, como o é, por exemplo, o direito de circulação – com o objectivo de salvar o bem maior que é a saúde pública e a vida de todos os portugueses.

Aqui chegados, à repetida pergunta sobre de que forma devem os progenitores executar, ou não, o cumprimento dos regimes acordados ou decretados, no que tange à entrega das crianças, e consequente sujeição das mesmas a deslocações em espaços e vias públicas, responde agora o Decreto do Conselho de Ministros. O referido diploma vem então esclarecer que o confinamento obrigatório não se aplica a deslocações por razões familiares imperativas, especificando “o cumprimento de partilha das responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente”. Posto isto, sabemos então ser possível, e agora esclarecido, aos pais deslocarem-se com as crianças para os entregarem ao outro progenitor, não existindo qualquer restrição a tais deslocações, permitindo assim que durante o actual estado de emergência as crianças possam estar, de igual forma ou nos termos acordados, com Pai e Mãe. E de outra forma não poderia ser.

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Em tempos de incógnita, em que não sabemos quando terá fim o actual estado de emergência, e o consequente cumprimento das medidas impostas, privar as crianças ao convívio com um dos progenitores durante o referido período, seria violar de forma perigosa e séria o seu superior interesse. Claro está que se os progenitores, por motivos de força maior, como seja, por exemplo, a saúde débil ou aparência de sintomas da doença de um deles ou o facto de partilharem domicílio com alguém que padeça de doença crónica, podem acordar que as crianças se mantenham com o outro progenitor. E digo acordar pois tais questões, a da residência e convívio, pela especificidade e relevância que têm na vida das crianças, devem ser encaradas como questões de particular importância, logo, carecem sempre de acordo de ambos os progenitores. Assim, incumpre o progenitor que se escusa à execução do regime quando se nega à entrega das crianças ao outro progenitor nos termos acordados ou decididos pelo tribunal, não existindo qualquer suspensão do regime quanto ao exercício das responsabilidades parentais no actual estado de emergência.

A sujeição das famílias ao recolhimento domiciliário tem possibilitado uma maior aproximação, cumplicidade, tempo, partilha de emoções e autoconhecimento que não pode ser negado a nenhuma criança quer no seio familiar materno quer no seio familiar paterno. Em tempos de crise social, como a que agora vivemos, onde se exige uma crescente responsabilidade social, é essencial que as nossas crianças saibam crescer, conhecer e adaptar os seus comportamentos junto de ambos os progenitores.

Num tempo de limitações, em que se assiste a uma evidente supressão de garantias típicas em qualquer Estado de Direito democrático, há uma delas que sobrevive: o superior interesse da criança, e ainda bem que assim o é.