Há tanto de errado e de preocupante nos recentes comentários do Presidente da Direção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares, à nota do Presidente da República sobre a alteração do Estatuto dos Magistrados Judiciais que se torna quase difícil saber por onde começar.

Apesar de estas declarações terem tido pouco destaque, devido à greve agendada pelos motoristas de matérias perigosas, merecem a maior atenção. Trata-se de saber como os juízes, titulares de um órgão de soberania, os tribunais, se veem a si próprios e ao resto do sistema.

Este representante dos juízes afirmou, em declarações à SIC, que não partilhava da preocupação do Presidente da República com a multiplicação de responsáveis públicos com vencimento de base superior ao do primeiro-ministro, incluindo autoridades reguladoras e de supervisão, entidades públicas empresariais, empresas públicas e outras entidades administrativas, “porque esses trabalhos não são para juízes: isso são trabalhos para amigos políticos de pessoas que estão ali 6 ou 7 anos a ganhar principescamente”.

Adicionalmente, relativamente à preocupação do Presidente com o acentuar da desigualdade de tratamento em relação a outras carreiras, como as Forças Armadas ou as Forças de Segurança, afirma que “a comparação também não nos parece feliz. Nós somos titulares de órgãos de soberania, portanto temos de ser comparados, acho eu, com pessoas que exercem cargos políticos. Mas com uma diferença: nós não estamos nesta função 4 anos, vindos de uma profissão qualquer e depois saltamos para uma empresa pública ou para um trabalho no estrangeiro. Nós trabalhamos nisto 40 anos, com exclusividade absoluta”.

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A primeira questão tem de se prender com o respeito institucional. As pessoas “que exercem cargos políticos” e de que este juiz fala com evidente desprezo desempenham funções de Presidente da República, são deputados da Assembleia da República ou membros do Governo. O presidente da direção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses fala de todos os restantes órgãos de soberania como nós esperamos que um juiz não fale de um pária da sociedade. Não é apenas errado. É inadmissível.

Em segundo lugar, ficamos a saber que este juiz reconhece que estes vencimentos são, efectivamente, “principescos”. As funções em que se ganha “principescamente” deverão ser reservadas na sua opinião, contudo, exclusivamente aos juízes. Primeiro, porque são titulares de órgãos de soberania. Segundo, na sua argumentação, porque são os únicos titulares de órgãos de soberania que… são juízes. Todos os outros titulares de órgãos de soberania, como sabemos, vêm de “uma profissão qualquer”. Que parece, independentemente de qual seja, não merecer a Manuel Soares o mesmo respeito que a profissão de juiz. O facto de os restantes órgãos de soberania derivarem direta ou indiretamente a sua legitimidade de um processo eleitoral, em que assumem maior legitimidade democrática do que os tribunais, parece ser para este juiz uma preocupação menor.

Em terceiro lugar, não deixa de ser assinalável que um representante dos juízes fale desta forma sobre quem decidiu, precisamente, valorizar a carreira da magistratura. Manuel Soares fala dos políticos que decidiram impedir ou obstaculizar a valorização da sua carreira? Não. Fala num dia em que possa estar previsivelmente frustrado e impaciente com a falta de reconhecimento da sua profissão? Não. Fala, sim, dos órgãos de soberania que acabaram de aprovar a valorização da sua profissão, através de uma proposta do Governo, aprovada pela Assembleia da República e promulgada pelo Presidente da República. Fica a impressão de que ter juízes a ganhar mais do que o primeiro-ministro é, afinal, o mínimo aceitável. Que vem tarde e que sabe a pouco. Uma vez que ganhar principescamente durante 40 anos parece ser pouco, ficamos na dúvida sobre o que seria adequado.

Não pode, também, deixar de nos preocupar que os juízes escolham como presidente da sua associação sindical alguém capaz destas declarações. Estas afirmações são um episódio infeliz e isolado ou revelam antes a conceção e a visão dos juízes sobre a sua atividade, sobre os restantes órgãos de soberania e sobre a sociedade portuguesa?

Perito Externo e Relator da Comissão Europeia na avaliação de candidaturas e de projetos do programa Horizonte 2020 e professor na ESCS