Ao que consta não foi a Entrevistadora quem escreveu o seu romance; não foi o Laureado da Canção quem escreveu a sua autobiografia; e não foi o Escultor do Soutien de Aço quem traduziu Arquíloco. Parece que cada um, ou quem em cada caso lhes paga as aventuras, encarregou outra pessoa de o fazer. Ter-lhe-á explicado muito bem o que queria: a tese pretendida para o romance, a vida que lhe convinha, o que lhe parecia que os gregos deveriam pensar da arte ou do serviço militar. Numa fase posterior, cônjuges, turistas e curadores quotizaram-se; e a obra nasce. O público, entretanto, arfa de indignação.

Não há motivo para isso. Trata-se de actividades legítimas, e de combinações razoáveis: uma Entrevistadora não tem que saber escrever, mas entrevistar; um Laureado da Canção não tem que saber falar de si próprio, mas trautear; e um Escultor não tem que saber línguas mortas, mas confeccionar espigões; e no demais qualquer pessoa pode legitimamente querer escrever um romance, traduzir Arquíloco, ou gostar de falar de si própria. As razões que lhe assistem podem até ser a atracção fatal que todos temos por aquilo que não sabemos fazer; mas são consigo, e mais ninguém tem nada a ver com isso.

Combina-se assim muitas vezes com um Espírito que este assista aos pormenores logísticos. Cada Espírito assina o que escreve com o nome de quem lhe paga; e sabe bem que não faria o romance, a autobiografia ou a tradução se os tivesse de assinar com o seu verdadeiro nome. Regra geral não tem outras coisas suas que conseguisse fazer. Esta posição invisível dá ao Espírito um módico de liberdade que não pode ser negligenciado, e lhe permite no fundo soprar onde quer. Imagine-se a alegria de se ser pago para escrever um romance sem que exista qualquer remorso por tê-lo escrito, de traduzir como quem lava os dentes, ou de compor a autobiografia de outra pessoa.

Pessoas alarmadas supõem que existe por esse mundo uma colecção de espíritos anónimos que se dedicam a fazer a arte atribuída a terceiros; e que essa colecção só não será uma fraternidade porque o segredo é tão absoluto que não se reconhecem sequer uns aos outros; e que tudo sob o sol está falsificado. A ideia de um mundo cuja cave é habitada por gnomos secretos e industriosos é uma suposição que não conseguimos averiguar bem, mas que parece exagerada; e é muito provavelmente falsa. Não será por exemplo de excluir que tenha sido o Escultor quem tenha realmente escrito o romance da Entrevistadora, embora ela o conheça por Espírito; e que o Cançonetista tenha traduzido o Arquíloco do Escultor, convencido de que tinha contratado um gnomo civil para a tarefa. O Arquíloco do Escultor não deixa de lembrar a autobiografia de um cançonetista; e o romance da Entrevistadora parece-se com um soutien de aço.

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