A poesia tem a fama e o proveito de não dizer o que tem a dizer, com uma excepção: os poemas políticos. Um bom poema político deve sempre perceber-se bem. Algumas pessoas acham que toda a poesia é política porque esperam no fundo que a poesia lhes explique aquilo que não são capazes de perceber de outro modo. Mas se nem sempre se percebem os assuntos políticos, porque é que se teria de perceber sempre a poesia política?

O melhor poema político português do século XX é o poema póstumo “Litania da Rua dos Fanqueiros,” de Cristovam Pavia (1933-1968). O poema é desfavorável ao então Presidente do Conselho, a quem o autor se dirige em termos ríspidos. Mas vistas melhor as coisas, nesse poema a palavra “Salazar” é uma metáfora que se refere à Rua dos Fanqueiros; e “Rua dos Fanqueiros” é uma segunda metáfora, que designa Portugal; só “Portugal” não é uma metáfora: “Ó Rua dos Fanqueiros / Ó Portugal minha pátria de meia-tigela // — Aqui para nós, passa-se tão bem sem ela!”

Nem todos apreciarão a franqueza, mesmo aqueles que no demais concordariam com um tratamento menos obsequioso do Presidente do Conselho. Dizer mal de um país inteiro, e dos seus habitantes (“são carochas ou são gente?”), compará-lo a uma rua baça de Lisboa, e também, como no princípio do poema, compará-lo desfavoravelmente a Espanha, passa das marcas. Gostamos da nossa poesia política com conta, peso e medida, especialmente durante os tríduos comemorativos.

O que piora as coisas não é o poema ser sobre Portugal inteiro, e sobre os animais que lá vivem. É, como outros poemas de Cristovam Pavia, este poema político ter a forma de um poema religioso. Uma litania é uma súplica ou um lamento: uma enumeração longa em que, como em muitos poemas, ou em salmos, pessoas numa situação desastrosa se dirigem a alguém de quem não esperam respostas claras. É por isso que esta descrição de Portugal não é de auxílio a quem pretende clarificar a sua compreensão política de Portugal. Não podemos esperar ajuda de versos como “Ó Rua dos Fanqueiros / Ó Salazar com teu rebanho de sacristas / Pensar que isto já foi terra de sardinha assada e de fadistas.”

Embora Salazar não fosse um devoto de futebol ou de Fátima, poderá causar perplexidade que o Presidente do Conselho seja aqui oposto ao fado e às sardinhas. A explicação porém é ainda religiosa. “Litania da Rua dos Fanqueiros” é um exemplo de teologia política. Conta-nos a história desastrosa de um culto anterior que foi irremediavelmente destronado por uma religião de carochas. O seu propósito não é encorajar as nossas convicções actuais, ou explicar que convicções devemos arranjar; o seu propósito é mostrar que as nossas convicções actuais fazem parte desse desastre: e é por isso que é um poema político.

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