Estamos a viver uma crise. Repetidamente, temos dito uns aos outros, é a maior crise vivida na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Percebemos, com mais ou menos clareza, que o mundo se reconfigurará no pós-guerra russo-ucraniana na economia, na política, na cultura. Mas como e até que ponto ainda não sabemos.

Será o retorno a um mundo bipolarizado como o que saiu da Segunda Grande Guerra, mas com a China a ocupar o lugar antes ocupado pela Rússia? Um eixo Pequim-Moscovo? E a Europa? Afinal é o maior parceiro comercial da China e mesmo agora é a Europa quem está a alimentar o exército russo através do gás e do petróleo: com uma mão sancionamos enquanto com a outra alimentamos aquele que sancionamos. É um dilema que nos descredibiliza internamente pois não podemos ganhar sem, ao mesmo tempo, perder. Esta é a armadilha do «duplo vínculo».  O que se passa com a Rússia, passa-se com a China. Vamos deixar de ter a China como parceiro comercial? Ou calma e cinicamente afirmamos este é o mundo adulto da economia global? Temo-lo feito ano após ano e, não fora a inesperada resposta de Zelensky, e do povo ucraniano, continuaríamos a fazê-lo.

Há, no entanto, mais variáveis a considerar. As conquistadas com a pandemia. Afinal, cedemos liberdades para o seu controlo em cada estado de emergência. E em todo o mundo. Oferecemos localização e dados de saúde. Mostrámos o que pode funcionar à distância, quem e como, sejam empresas ou pessoas. Qual a aceitação e a recusa das populações a confinamentos, alterações de rotinas e profissionais, emergências sanitárias, policiamento, certificação. Aceitámos testagens e medições de temperatura em aeroportos e por todo o lado. E mais. Voluntariamente, através de gadgets a que chamamos pulseiras de fitness, smartwatches ou mais recentemente com os anéis Oura, produto ainda não desnatado, damos de bandeja toda a informação de saúde, em tempo real: frequência cardíaca, tensão arterial, actividade física, repouso, horas de sono e de actividade e, com os anéis Oura, até a temperatura corporal. Se a esta informação juntarmos a que já cedemos há anos em cada movimento do cartão de crédito, da portagem com Via Verde, das câmaras de rua, dos emails e das compras online e dos sites visitados, dos amigos do Facebook, dos comentários no Twitter, as fotografias no Instagram, dos telefonemas que fazemos e tanto mais que se avoluma numa quantidade de informação cruzada que jamais qualquer polícia política teve sobre um cidadão, compreendemos: depois de termos entregue a privacidade entregámos também a individualidade. Como é que estes dados vão ser tratados? Por quem? Com que objectivos? As amostras não têm sido boas, desde a proto-tecnológica Cambridge Analytica às interferências nas eleições norte americanas, ao milhão de uigures em vigilância, internamento e reeducação na China. Podemos, com facilidade, conceber um mundo onde a nossa transparência é total e a liberdade nula.

Nesta nova bipolaridade jogar-se-ão velhos valores que já estão em jogo: direitos humanos, liberdade, democracia, quem os defende e quem os sacrifica.

A invasão russa da Ucrânia coloca-nos numa situação que não se compadece de relativismos. Putin tem sido claro. A Rússia estende-se para além daquelas que são as suas actuais fronteiras: a Ucrânia, a Moldávia, a Estónia, a Letónia e a Lituânia compõem esse mito territorial. Os estados bálticos, no entanto, estão salvaguardados pela Nato. Xi Jingping também tem sido claro. Os seus valores alinham-se com os de Moscovo – e a Europa, paga. Não é apenas a falta de independência energética, não é só a incapacidade de defesa. As importações europeias da China ascendem a 472 biliões, as exportações europeias não ultrapassam os 223 biliões, sendo a Alemanha o maior exportador (dados Eurostat de 2021), enquanto o protecionismo chinês aumenta e a China, na vanguarda da inteligência artificial, e a Rússia estabelecem protocolos de cooperação quer para a exploração espacial quer de vigilância tecnológica.

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Vivemos uma crise europeia: os meios de que dispomos não são suficientes para responder à situação em que estamos. Esta guerra serviu-nos de espelho: mostrou-nos que a Europa imaginária de Macron, a trilhar o seu próprio caminho, não existe, é como aqueles miúdos de vinte anos que são muito crescidos, mas vão lavar a roupa à casa da mãe e levam a comida para a semana seguinte. Não há independência sem meios.

Temos de pensar a Europa que queremos ser, podemos ser, nesta reconfiguração que avança a passos largos.

A autora escreve segundo a antiga ortografia