Várias vezes me tenho perguntado sobre o modo como a governação de António Costa será olhada no futuro, daqui a três ou quatro décadas. Na última semana, percebi que os historiadores fixarão duas inesquecíveis palavras: “Não li“. Quando ouvi Ana Mendes Godinho escusar-se de comentar o sucedido no lar em Reguengos de Monsaraz, dizendo não ter lido o relatório sobre as 18 vidas que se perderam, lembrei-me imediatamente de 2017. Estávamos em outubro e o relatório sobre Pedrógão Grande acabara de vir a público com duras críticas às falhas do Estado nos incêndios. António Costa, caso o meu caro leitor não guarde disso memória, disse exatamente o mesmo: “Não li“. E a ex-ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, idem: “Não li“. Era isso que o Governo tinha a dizer às famílias dos 66 mortos em Pedrógão: desculpem, mas não lemos; os senhores perderam tudo, ficaram sem nada e nós não dispensamos umas horas para ler um relatório sobre o assunto.

Três anos depois, a relativização, a desumanidade e a irresponsabilidade não mudaram um centímetro. O Partido Socialista prossegue impávido e sereno perante o desmantelamento moral e físico da entidade que nasceu para nos separar da selvageria: o Estado.

Foi assim em Pedrógão, foi assim em outubro desse ano, foi assim em Monchique no ano seguinte, foi assim no desabamento da estrada de Borba, foi assim no descarrilamento de um comboio, foi assim nos lares durante a pandemia e será assim face a qualquer abandono ao acaso a que o próximo português seja sujeito.

Tristemente, parece ser essa a identidade em comum que nos sobra: uma cidadania orfã de Estado; uma nacionalidade despida de soberania e esquecida, quando não receosa, do seu significado; um povo que é vítima constante do seu próprio território; frágil, inseguro e permeável à pior das arbitrariedades, condenado a uma existência que é um risco por si só. Um país com um Governo que não governa e um Estado que não está.

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A sociedade dita civil, todavia, não demonstra grande incómodo. A superficialidade das polémicas vai-lhe sendo mais confortável do que a realidade das tragédias. Rita Rato no museu do Aljube, a menstruação como tópico no Twitter, um livro sobre o Chega que não diz mal do Chega, a Cristina que volta para um lado e o Jorge Jesus que volta para outro, o Cavani que vem aí amanhã, o crowdfunding de um desconhecido, uma ministra ter dito “drink“, o torneio de manifestações entre malta que é racista e não quer dizer e malta que não é racista e tem de dizer a toda a gente, o ativista que considera a polícia “uma bosta” menos para lhe prestar escolta, Marcelo como candidato a nadador-salvador no Alvor, entre outras tantas profanidades, serviram de pronta anestesia ao país em que a fome chegou, o desemprego está para ficar e a economia caiu como nunca em quarenta anos.

Numa ironia de que só política seria capaz, meia década de esquerda no poder culminou nessa anulação completa do papel do Estado.

Olhando à volta, foram os estatistas – eles mesmo – que mataram o Estado na sua dignidade e função. Ao fim de quase cinco anos de Governo socialista, os incumbentes não fizeram mais do que usar a autoridade que lhes foi confiada como uma daquelas trotinetes descartáveis que agora enchem as esquinas das cidades: a gente usa quando convém e abandona quando apetece. E isso sentir-se-á – e muito – durante a crise.

Neste Portugal, não se pode ficar doente com a esperança mais ou menos certa de sobrevivência, não se pode andar de comboio sem medo que este descarrile, não se pode entrar numa estrada sem medo que esta desabe, não se pode fazer uma viagem sem medo que o caminho arda, não se pode inscrever os pais ou os avós num lar sem medo que estes morram desnutridos, desidratados e sem as mínimas condições de dignidade. Lamento escrevê-lo assim, mas este é o retrato de um país a que já não se pode chamar país. É um lugar, uma massa de terra, um sítio, um ponto num mapa que em tempos mudou todos os mapas. Mas um país, uma nação, um Estado, é que já não é. Foi. Fomos. Mas isso eles também não devem ter lido.