Vejam os bombardeamentos indiscriminados sobre a população civil. Vejam as filas das pessoas a fugir. Prevêem-se cinco milhões de refugiados, cerca de metade da população de Portugal. Vejam as pessoas que se amontoam, desesperadas, nas estações de comboios. Vejam aquele tanque russo que se desvia da sua trajectória para esmagar um carro que passava. Vejam aquele estranho negrume que invade as cidades destruídas, os cadáveres no chão. Está tudo à nossa frente, num presente inolvidável.

Vi algo disto ao vivo há muito tempo na Bósnia, em Mostar, no início de 1994, e as imagens nunca mais me abandonaram. Lembro-me sobretudo da margem esquerda do rio Neretva, a parte muçulmana de Mostar, aonde se chegava atravessando umas tábuas de madeira provisórias e periclitantes. Noventa e cinco por cento das casas estavam destruídas. Tudo era negro, de uma negrura densa que não era uma cor, mas uma espécie de disposição diabólica da matéria, e era como se essa negrura fosse a única coisa que mantinha juntas as poucas pedras que haviam resistido aos bombardeamentos, e entre os escombros circulavam frágeis silhuetas de uma magreza infinita que ainda habitavam aquele jardim de mortos.

Li no outro dia o escrito de Putin “Sobre a unidade histórica dos russos e dos ucranianos”, de Julho do ano passado, onde ele fornece o verdadeiro argumento para a invasão da Ucrânia. É, garanto, uma leitura muito elucidativa. Não comento, é claro, a mobilização de dados históricos a que Putin procede para justificar a indistinção última entre a Rússia e a Ucrânia, mas a leitura de qualquer boa história da Rússia ou de dois ou três livros de Serhii Plokhy chega amplamente para perceber a falsificação do passado a que Putin se dedica.

É do ponto de vista conceptual, por assim dizer, que o artigo é interessante. De um lado temos a unidade. Unidade do povo (um único povo – um único todo), unidade do “espaço histórico e espiritual”, unidade originária da língua (sucessivamente descrita como “a mesma”, “semelhante”, “idêntica”, etc. – Putin, como Estaline, dedica-se briosamente à linguística), unidade, finalmente, expressa pela organização do espaço territorial por Moscovo. Do outro lado, encontramos a divisão. Representam-no as forças que minam a unidade e que, desde “tempos imemoriais”, dividem para reinar, se necessário oferecendo o controle da Ucrânia a “forças externas”, nomeadamente aos “autores ocidentais do projecto anti-russo”. Sente-se, nesta oposição metafísica entre a unidade e a pluralidade, a presença tutelar de Ivan, o Terrível, dedicando-se, com o auxílio dos Oprichniks, à guerra contra os vis boiardos pela unificação do poder por Moscovo. E não é difícil imaginar, nas entrelinhas do erudito ensaio, a voz de Ivan, declarando, na segunda parte do filme de Eisenstein, quando a missão unificadora ganha novo impulso: “Doravante, serei terrível”.

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E a necessidade de ser terrível é tanto mais justificada quanto, no passado, reinava entre a Ucrânia e a Rússia um entendimento perfeito, para não dizer idílico. De facto, a cooperação passada entre a Ucrânia e a Rússia é “um exemplo para a União Europeia”. Por isso, os ucranianos – tirando os “radicais e neo-nazis” – tratam os russos com desvelo e “grande afeição”. Uma afeição tão sublime que Putin não hesita em acabar o artigo, confiante, proclamando: “O que a Ucrânia será – cabe aos seus cidadãos decidir”.

É lícito admitir que a revivescência das personagens e acções do passado, à maneira de Michelet e Oliveira Martins, é uma ambição-limite dos historiadores, embora fortemente atenuada por mil preocupações metodológicas. No entanto, tal ambição-limite, conduzindo a uma espécie de alucinação do passado no presente, a uma presentificação do passado, tanto pode conduzir a resultados interessantes como a uma pura e simples falsificação do passado (há uma elucidativa troca de cartas entre Eça e Oliveira Martins a propósito desta questão). Receio bem que o ensaio de Putin seja um acabado exemplo desta segunda possibilidade.

Mais geralmente, um outro problema se coloca, que é aqui a mais importante. Muita gente, sem a brutalidade de Putin, procura, de maneiras diversas, deduzir o juízo político sobre o presente de considerações históricas. Há muitos exemplos contemporâneos disso, sobretudo em considerações “realistas” sobre a invasão da Ucrânia. Ora, longe de mim pensar que a formação do juízo político pode viver em completo isolamento da atenção à história. Acontece simplesmente que o primeiro não se pode deduzir da segunda. Em termos técnicos, tal tentativa de dedução releva de uma anfibolia: considerar da mesma forma e atribuir à mesma faculdade objectos próprios de faculdades diferentes.

Por mais que partilhem um domínio comum, o espaço das acções humanas livres, a investigação histórica e o juízo político relevam de faculdades diferentes e os seus objectos não são idênticos. O juízo político centra-se num presente que não é uma alucinação, boa ou má, de um passado que procura presentificar, ele lida com o próprio presente que se descobre ao nosso olhar e face ao qual é necessário deliberar e agir, escolhendo o futuro que desejamos (não se delibera sobre o passado). Por exemplo: como agir em resposta à bárbara invasão da Ucrânia por Putin, ao cortejo de mortes, destruição e refugiados que ela trouxe e à ameaça de uma extensão da guerra a outros países?

Os ucranianos e o presidente Zelensky, com uma coragem que é infame não aplaudir no que quer que se escreva sobre a situação presente, deliberaram e agiram. Zelensky, em último lugar no seu esplêndido e emocionante discurso na Câmara dos Comuns na terça-feira passada, sob o aplauso de todos os presentes que enchiam a sala, expôs as condições que levaram os ucranianos a decidirem-se pela resistência ao invasor russo.

E o mundo livre – é a expressão que convém – que o apoia? Que deliberações e acções foram as suas? No princípio, confesso, receei que a sua atitude correspondesse à que nos conta uma história antiga. Um casal está em casa, que de repente é invadida por um bando de meliantes. Seguram o homem e traçam no chão, em torno dele, um círculo de giz, avisando que se ele calcar o círculo, enquanto violam a mulher, o matam. Sucessivamente violam a mulher e partem. O homem dirige-se à mulher com um sorriso vitorioso nos lábios: “Pisei o círculo!”. Mas, felizmente, apesar de várias limitações, o mundo onde há liberdade não se limitou a pisar o círculo de giz. Uniu-se de uma forma surpreendente para ajudar, apesar das sabidas limitações, a Ucrânia.

Talvez assim haja uma remota possibilidade de Putin não conseguir, apesar de toda a destruição já provocada e a vir, transformar a Ucrânia, como Milosevic transformou a Bósnia aquando da desintegração da Jugoslávia, num jardim de mortos passeando-se entre o negrume diabólico das ruínas.