Cada época tem liberdades que lhe são próprias, muitas vezes incompatíveis com as liberdades de outras épocas. Tocqueville mostrou-o no que diz respeito ao Antigo Regime e à sociedade pos-revolucionária e, muito mais importante, a experiência da vida mostra-o a cada um de nós: pouco tempo basta para que certas liberdades permitidas pela sociedade desapareçam e outras novas surjam em sua substituição. E, naturalmente, quem tiver crescido com as liberdades antigas sempre sentirá a falta delas, cuja memória as novas não apagarão. Resta aceitar democraticamente o curso dos tempos, procurando preservar pelo menos a memória dessas antigas liberdades contra a força obliteradora do presente.

Dito isto, a par da tendência uniformizadora da democracia, com o fatal aumento da presença de um Estado tutelar, paternal e vigilante e a concomitante infantilização dos indivíduos, há algo que é quase uma perversão dessa mesma tendência e que age, cada vez com menos restrições, no sentido de contrariar as liberdades em geral, ambicionando não deixar praticamente reduto algum em que elas sobrevivam, nem sequer sob a forma da memória, tal como esta se exprime em atitudes, gestos ou palavras. E essa perversão é, nas nossas sociedades, representada por uma certa esquerda, que conjunturalmente parece ter tomado conta do espaço praticamente todo da esquerda tradicional, onde a memória e a prática da liberdade se encontravam ainda vivas e activas, ao ponto de quem, no interior dos sobreviventes dessa antiga tradição, a procurar ainda preservar, ser condenado, por um processo ao outro, ao silêncio e à irrelevância.

O que esta nova esquerda, que nos seus antecedentes é velhíssima, busca não se reduz ao desenvolvimento de um Estado tutelar. Isso, não apenas a velha esquerda como a maioria da direita o procura também, até porque é algo que acompanha a tendência geral à democratização uniformizadora da sociedade. É algo que visa a perfeita eliminação da sociedade como realidade distinta do Estado, a subjugação dos indivíduos e das suas acções ao controle estrito pelo Estado, sem margem de manobra possível. Ouçam Catarina Martins na televisão, ou qualquer representante da “ala esquerda” do PS, e é exactamente isso que é dito, sem papas na língua.

Pode-se dizer, sem receio de particular injustiça para com Marx, que uma parte desta atitude tem origem no marxismo, mas a verdade é que ela vem de mais longe. À sua maneira, Benjamin Constant já a havia diagnosticado num texto célebre de 1819, Sobre a liberdade dos Antigos comparada com a dos Modernos. Constant identificava os adversários da liberdade individual como os herdeiros da tradição rousseauiana, como Mably, que “detestava a liberdade individual como se detesta um inimigo pessoal”. É esse ódio que é transparente nos discursos da sorridente Catarina e dos seus amigos, não só do Bloco como também da esquerda nova do PS. E não falo sequer do PC, para o qual a liberdade individual é, desde tempos imemoriais, objecto de uma condenação que se ambiciona “científica” e fundada numa filosofia da história de que não se desvia, aconteça o que acontecer, um só milímetro.

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Tudo isto tem óbvias ressonâncias teológicas. Trata-se da velha luta entre a luz e as trevas que o maniqueísmo colocava no princípio explicativo de tudo. Coloquem o indivíduo em lugar da matéria e o Estado a fazer a vez do espírito e têm lá tudo. Tudo o que mexa fora do Estado, tudo o que possa ser visto como criação de indivíduos autónomos e agentes livres, é visto como o resultado de um princípio diabólico que é preciso matar na raiz. Do ensino à economia e à saúde, passando por quase tudo o resto, esta teologia política tomou conta das cabeças quase todas da esquerda e tornou-se o dogma maior do presente governo.

Dir-me-ão que, por má-fé ou ignorância, caricaturo, e que Bloco, que é o mais vocal representante destas doutrinas, milita, e sempre militou, por vários aspectos da liberdade individual, como por exemplo em matérias de sexualidade. Na aparência, talvez seja assim, e se fosse verdadeiramente assim o folclore que costumeiramente exibe seria facilmente perdoável. Mas convido-vos a atentarem na natureza dos indivíduos tal como o Bloco os concebe. Não se trata de agentes dotados de um princípio interno de acção e de criação em qualquer dos planos da vida social que possamos conceber, desde os empresários que procuram criar riqueza aos artistas. São antes apenas seres definidos por propriedades genéricas misteriosamente encarnadas em sujeitos curiosamente insubstanciais e sem princípios de acção próprio: indivíduos não individuais, por assim dizer. Peguem em qualquer uma das “causas” freneticamente agitadas pelo Bloco desde há anos e encontram sempre, qualquer que ela seja, como seu objecto único, esses tais indivíduos não individuais.

É aos indivíduos não individuais, constituídos por uma amálgama de propriedades abstractas, que a política da nova esquerda – a do Bloco e a do governo – se dirige. E ela apresenta o mais avassalador conformismo, apesar das aparências enganadoras. O conformismo manifesta-se, entre outras coisas, na obsessão de legislar em todos os domínios possíveis, de modo a que a lei e os comportamentos humanos coincidam ponto por ponto, ao milímetro. Esta ambição, que equivale a uma excisão da imaginação nos seres humanos, destrói a liberdade individual, que passa certamente pela possibilidade de agir criativanente, longe da obrigação de coincidência estrita com as regras de comportamento encapsuladas nos mínimos mandamentos do Estado. Sou suficientemente velho para me lembrar dos tempos em que a esquerda o sabia. Hoje, ignora-o por inteiro.

O que está por detrás disto tudo é um grande medo da liberdade, da confrontação com a contingência, o risco, a incerteza e a deliberação. Dito de outra maneira: o medo – um medo, é claro, compreensível – do isolamento e da solidão, algo que faz desejar uma sociedade fechada, na acepção que Popper, que convém recordar por estes dias, deu à expressão. Não quero de modo algum absolutizar entidades abstractas, mas, nos tempos que correm, é a direita que melhor defende a liberdade, pelo menos uma direita que saiba interpretar convenientemente a complexa e contraditória tradição da liberdade que é a nossa. E é uma missão urgente, porque não estamos apenas em presença da metamorfose das liberdades que referi no início deste artigo. É mesmo de um confronto com os inimigos da liberdade que se trata.