Vladimir Putin emergiu do anonimato público, nos meados dos anos 90, como um reformista democrático que finalmente modelaria a Rússia de acordo com as formas ocidentais de governo e transferência do poder. Como John Lloyd nos lembra, mesmo antes de assumir o cargo, “os primeiros e modestos discursos de Putin foram projetados para receber aplausos ocidentais. Ele sugeriu que a Rússia se poderia juntar à NATO” e “apoiou as liberdades de imprensa e de expressão”. O apogeu dessa postura reformista e democrática ocorreu no seu discurso de posse, em maio de 2000, no qual comemorou o facto de a “Rússia se estar a tornar um estado democrático moderno” e que “pela primeira vez na história de nosso país … o poder supremo … foi passado da forma mais democrática, mais simples, pela vontade do povo, legal e pacificamente”, atestando a força do recém-nascido “sistema constitucional”.

Segundo Putin, a sua eleição era o testemunho vivo de uma nova Rússia, animada por princípios democráticos e liberais. Ainda que reconhecendo que a “construção de um Estado democrático está longe de ser concluída”, o presidente recém-eleito concluiu o seu discurso num tom esperançoso: “… muito já foi feito. Devemos valorizar as conquistas, preservar e desenvolver a democracia, para garantir que o poder eleito pelo povo trabalhe em prol dos seus interesses, defendendo o cidadão russo em todo o nosso país e no exterior, para servir ao interesse público”.

Vinte e dois anos depois, sabemos que tudo era uma fachada – uma fachada, contudo, complexa e cheia de nuances. Em dezembro de 2002, o então secretário-geral da NATO, Lord Robertson, proferiu um discurso em que defendeu “Uma Nova Revolução Russa: a Parceria com a NATO”, segundo o qual “a parceria entre a NATO e a Rússia marca o fim de um século sombrio na história da Europa”. O tom esperançoso e confiante do discurso – que reverbera a bom som o “fim da história” de Fukuyama – é um dos primeiros exemplos da total ingenuidade do Ocidente em relação à Rússia de Putin.

Assim como as cenas iniciais de um filme nos costumam dar a chave para entender toda a trama, os primeiros movimentos de Putin também foram premonições do que estava por vir: um complexo jogo – ou guerra – de desinformação. Já em 2005, Putin afirmava que o colapso do império soviético era “a maior catástrofe geopolítica do século”. E, mais recentemente, o seu boicote à organização Memorial – dedicada a preservar a memória das milhões de vítimas dos crimes soviéticos – demonstrou que a máscara democrática já foi há muito descartada.

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A investida na Ucrânia é apenas o mais recente desenvolvimento de uma estratégia que Putin tem exercido desde que assumiu a presidência – uma estratégia que está imersa numa visão muito específica de mundo e da história; e que passa completamente despercebida se continuarmos a olhar apenas para a superfície das suas ações.

No seu livro de 2018, O Caminho para o Fim da Liberdade, o historiador americano Timothy Snyder argumenta que a Rússia de Putin é um exemplo perfeito da “política da eternidade”. De acordo com Snyder, “a eternidade coloca uma nação no centro de uma história cíclica de vitimização. O tempo não é mais uma linha reta para o futuro, mas um ciclo que revive incessantemente as ameaças do passado […] Os políticos da eternidade partilham a convicção de que o Estado não pode ajudar a sociedade como um todo, apenas tomar precauções contra ameaças prementes. O progresso dá lugar à condenação.

Segundo Snyder, o cérebro por trás da “política da eternidade” de Putin é Ivan Ilyin, um filósofo russo relativamente desconhecido e decerto enigmático, cujo legado havia sido, até recentemente, completamente soterrado pelo Estado soviético. Isto porque a filosofia de Ilyin foi profundamente moldada pela Revolução Bolchevique, mais especificamente, como uma resposta contrarrevolucionária aos acontecimentos de 1917. Ilyin tornou-se “um defensor de métodos violentos contra a revolução e, com o tempo, o autor de um fascismo cristão destinado a superar o bolchevismo”. Já exilado em Berlim, “Ilyin formulou os seus escritos como uma orientação para os líderes russos que chegariam ao poder após o fim da União Soviética”. E assim aconteceu.

A filosofia de Ilyin trata a Rússia como um organismo vivo cuja “força da sua alma [vem] de Deus”. Munido de uma visão providencial – e apocalíptica – da história, Ilyin argumenta que os russos mantêm uma inocência que “não é observável aos olhos do mundo”. Por outras palavras, a Rússia de Ilyin nada mais é que a Cidade de Deus entre as cidades dos homens.

Essa sua visão organicista de nação e da sua história concretiza-se num anti-individualismo austero e inflexível. Nas palavras de Aleksandr Dugin – uma espécie de guru de Putin cujo pensamento foi também profundamente influenciado por Ilyin – “no cristianismo ortodoxo russo, uma pessoa é parte da Igreja, parte de um organismo coletivo, assim como uma perna. Então, como pode uma pessoa ser responsável por si mesma? Pode uma perna ser responsável por si mesma? É aqui que se origina a ideia de estado, o estado total… o Estado é tudo e um indivíduo não é nada.

Seguindo a filosofia traçada por Ilyin, a nação russa deve manter a sua incorruptibilidade virginal, o seu corpo deve permanecer intacto. Como lembra Snyder, “Ilyin escreveu acerca dos “ucranianos” sempre entre aspas, pois negou a sua existência separada do organismo russo. Falar de uma Ucrânia independente correspondia a ser um inimigo mortal da Rússia. Ilyin deu como certo que uma Rússia pós-soviética incluiria a Ucrânia.

Mais do que isso, a Rússia pós-soviética de Ilyin deveria ser guiada por um spasitelnii, uma figura redentora cujo caráter político-religioso deveria mesclar uma força de vontade intransigente com a capacidade de “derramar o sangue de terceiros para tomar o poder”. E isso explica a forma como Putin se vê: ele é o spasitelnii de Ilyin, o ansiado líder da Rússia pós-soviética.

A influência da filosofia de Ilyin em Putin é inegável: em 2005, o presidente russo exigiu que o corpo de Ilyin fosse trazido da Suíça para Moscovo; Ilyin é frequentemente citado por Alexander Dugin e outras figuras proeminentes no Kremlin; no “início de 2014, o Kremlin ofereceu aos membros do partido de Putin e a todos os funcionários públicos da Rússia uma coleção das publicações políticas de Ilyin”; e, em 2017, “a televisão russa comemorou o centésimo aniversário da Revolução Bolchevique com um filme que apresentava Ilyin como uma autoridade moral”.

Uma vez que entendemos a influência profunda de Ilyin na atual administração do Kremlin, fica mais clara a importância da Ucrânia para o projeto político de Putin. Afinal de contas, o organismo russo não pode contemplar a falta de uma das suas partes vitais.

Quando Lionel Barber, então editor do Financial Times, se encontrou com Putin em 2019, observou que uma imponente estátua de bronze de um czar paira sobre a mesa de cerimónias do gabinete presidencial. Esta nada mais é que uma estátua de Pedro, o Grande, a forma arquetípica do spasitelnii de Ilyin, o principal responsável pela expansão territorial do Império Russo. Em vez dos usuais retratos presidenciais, Putin decidiu forrar o Kremlin com referências ao czar do século XVIII. Estamos, mais uma vez, perante a “política da eternidade”.

Enquanto nos deslumbramos com a nossa própria modernidade, Putin revive uma visão antiga – quiçá arcaica – da história, que tem raízes numa visão muito específica de Nação e da sua missão divina. Isso é perfeitamente exemplificado no ensaio de 5000 palavras que o próprio presidente Putin – reza a história – publicou há alguns meses no site do Kremlin intitulado Sobre a Unidade Histórica dos Russos e dos Ucranianos. A influência de Ilyin é inquestionável.

De acordo com Putin, russos, ucranianos e bielorrussos são, na verdade, um mesmo povo, os “descendentes da antiga Rus’”. Sendo assim, a ideia do “povo ucraniano como uma nação separada dos russos”, segundo Putin, “não tem base histórica”. Ben Wallace, o atual secretário de defesa britânico, respondeu com um ensaio no qual argumenta que, na verdade, as alegações de Putin é que não têm base histórica real: “ao longo da sua história, a Ucrânia esteve separada da Rússia muito mais tempo do que alguma vez esteve unida”; e “os povos da Bielorrússia, Rússia e Ucrânia […] partilham, na melhor das hipóteses, descendência, jamais a mesma identidade”. No entanto, pouco importa o quão ponderado ou correto esteja Wallace. O ensaio de Putin não está realmente interessado em minúcias históricas ou na exatidão de sua tese: é uma narrativa, o mito fundador que lhe justifica as suas ações na Ucrânia. Os argumentos académicos desmoronam-se diante da dialética do poder.

No que concerne às relações Russas com a Ucrânia, estamos longe do reino dos factos. A análise que Snyder faz da influência de Ilyin é muito esclarecedora, mas não conta a história toda. Ilyin era um exilado soviético, enquanto Putin é, de certo modo, um nostálgico soviético. Afinal de contas, Putin considera a queda do Império Soviético “a maior catástrofe geopolítica do século”. Como Martim Vasques da Cunha nos lembra num importante ensaio, jamais podemos esquecer que Putin é um ex-KGB: as táticas de desinformação e as técnicas de guerra assimétrica que caracterizavam a inteligência soviética jamais o abandonaram.

Os recentes acontecimentos na Ucrânia são um exemplo perfeito dessa síntese macabra da filosofia de Ilyin com a desinformação soviética. Enquanto Ilyin forneceu a teoria, foi na KGB que Putin aprendeu a colocá-la em prática. Desde o princípio, as relações entre a Rússia e a recém-independente Ucrânia foram marcadas por desinformação e falsas promessas. Enquanto o Ocidente desejava que a Ucrânia aceitasse o sistema democrático e eventualmente se juntasse à UE – um processo que foi adiado reiteradamente desde a adição de dez novos membros em 2004 – os russos instigavam para que o seu candidato, Víktor Yanukóvytch, fosse eleito para a presidência ucraniana. A posição russa sempre foi caracterizada pela dissimulação e pela ameaça iminente. Enquanto permitiam que a Ucrânia se aproximasse dos padrões europeus quando se tratava de normas políticas e económicas, jamais lhes deram a mesma liberdade no que tocava ao envolvimento nas políticas de defesa do Ocidente.

Todas as concessões mascaravam a verdadeira intenção de Putin: dominar totalmente o país. Como o seu recente ensaio deixa claro, Putin vê, a par de Ilyin, a independência da Ucrânia como uma anomalia histórica insustentável.

Assim, quando em 2014, a Rússia invadiu e anexou a Crimeia, podíamos adivinhar o que estava por vir. No momento em que escrevo, a Rússia invadiu a Ucrânia. E, tal como em 2014, a história parece repetir-se, desta vez não só enquanto tragédia, mas também como farsa. David Patrikarakos, um jornalista que esteve presente na Ucrânia durante a invasão de 2014, narra uma situação arrepiantemente similar à atual: “Há quase oito anos atrás, sentei-me nos escritórios do governo de Kyev enquanto os políticos fumavam ininterruptamente e se perguntavam quando o tão prometido apoio do Ocidente viria. Agachei-me na neve com soldados que me perguntaram por que o Ocidente não podia simplesmente fornecer alguns sistemas de mísseis guiados antitanque para impedir que tantos de seus camaradas morressem em vão. Eventualmente, os mísseis chegaram, mas só depois de anos de dolorosa diplomacia, pressão internacional e o ex-presidente Barack Obama ter deixado a presidência. Quando Trump finalmente deu luz verde, centenas de ucranianos haviam morrido. O que tornou tudo isso pior foi que – em cada estágio da crise – os ucranianos foram levados a acreditar que a ajuda estava a chegar; que os EUA, a Alemanha ou a Grã-Bretanha finalmente concretizariam as suas ameaças…”.

Mas parece que a atenção ocidental não estava para aí virada. Nos idos de 2013, toda a preocupação do Ocidente em relação à Rússia foi direcionada para uma lei que proibia “propaganda gay para menores”. Na verdade, essa lei, aliada ao decreto de prisão do Pussy Riot, parece ter dado origem a um burburinho maior do que a própria tomada da Crimeia. E isso só foi possível porque Putin sabe perfeitamente como capturar a imaginação ocidental. Putin sabe que, enquanto habitamos o imediatismo dos tweets e gastamos a nossa atenção com o novo escândalo diário, pode continuar a alimentar a sua “política da eternidade”. Putin sabe que, enquanto invade um país, uma parte da intelligentsia ocidental se vai dedicar a denunciar “ilegalidades internacionais”. Putin sabe que enquanto age no mundo real, nos vamos continuar a aconchegar em abstrações ideológicas. Porque embora o Ocidente não entenda Putin, Putin entende o Ocidente.