Hoje, vou falar de algo que todos sentimos, que nos move, que nos molda e orienta na forma como somos connosco e com os outros. Não vou falar de amor nem de ódio, mas sim de um misto de ambos. Vou falar de identidade e sobretudo de preconceito. Preconceito é uma palavra que todos usamos, certo? Será que sabemos realmente o que é? Está tão impregnado nas nossas vidas, há tanto tempo e de tantas formas que é difícil termos distanciamento suficiente para realmente percebermos o que é, como nos relacionamos com ele e qual a relação que queremos ter com ele. O meu objetivo é que quando acabar esta exposição, não pensem mais no preconceito como algo banal, como um traço de identidade, mas sim como uma identidade externa a nós, com a qual temos de lidar, mas com a qual podemos e devemos estabelecer regras na relação que temos e queremos ter com ela. Sim, com isto, permitam-me assumir que de momento não acredito que vamos conseguir viver sem preconceito. Acredito, no entanto, que o que fazemos hoje, determina a forma como o preconceito vai ou não se manter, crescer ou diminuir. Assim, sim, os nossos filhos ou netos, poderão ter uma vida sem preconceito. Lidar com o preconceito hoje, é definir o futuro de amanhã. Cabe a cada um de nós estabelecer as regras do jogo, para que não soframos de abuso nesta relação com o preconceito.

A tomada de consciência será o primeiro passo neste jogo de poder. O que é então o preconceito? Se olharmos para o dicionário, podemos ler que é “ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial [1].” Esta é só uma forma de definir o preconceito. Para que este fenómeno seja mais palpável, o melhor é inscrevê-lo no tempo num enquadramento sociológico, relembrando-o nos seus diversos formatos e funções.

Durkheim diria que os fenómenos sociais, como o do preconceito, variam entre determinados valores e cumprem funções. Parece-vos estranho? Precisamos do preconceito? Isto nunca será uma resposta de sim ou não. Todo o comportamento poderá ter um lado positivo e funcional para a pessoa que o comete, como no caso do preconceito. O mesmo se aplica ao crime, ao consumo de substâncias… O preconceito é, no fundo, o resultado de um conflito de quereres. Perceber a complexidade de qualquer comportamento, destes duelos, vendo também o seu lado funcional torna mais exequível entendê-los e trabalhá-los. Construir uma relação saudável com o preconceito é entender que a diferença não é patológica (Matza e Sykes).

Na prostituição, podemos falar de preconceito. Temos como etiqueta mental que são mulheres pobres, que se subjugam a um ato sexual por necessidade. Na nossa cabeça, estas mulheres são vítimas e os seus clientes agressores. Um julgamento moral faz-se associado a este significado tácito que existem dois tipos de mulheres em sociedade; as desviantes e as normais ou socialmente corretas. O estigma ligado ao desvio, e que progressivamente estabelece ligações entre as várias dimensões da vida para se tornar a identidade da mulher, do grupo, é um vírus tão perigoso quanto o que vivemos atualmente (Covid-19). Rótulos levam a julgamentos que por sua vez justificam comportamentos e este círculo vicioso só se quebra quando algo de muito forte acontece. Para as prostitutas, o caminho é longo, mas esta batalha é tão antiga quanto a própria prostituição, é uma batalha pela mulher e pelos direitos da mulher. O preconceito aumenta o risco das prostitutas ao passo que diminui a sua autoestima. Cria condições para a legitimação de práticas perigosas. Legitima e perpetua etiquetas seculares sobre o que devem ou não as mulheres fazer, como e com quem devem estar, ou o que podem ser. Este caminho da mulher, é de conquistas, sabemos disso. Há menos de um século as mulheres não podiam votar em Portugal, hoje ganhámos esta batalha. Há 50 anos e na maioria do país, ainda era mal visto que uma mulher trabalhasse e não cuidasse dos filhos. Hoje, lutamos não só para que trabalhe, mas para que tenha condições iguais e que esteja igualmente representada nos altos cargos do nosso país. Importa perceber o caminho percorrido quando falamos de preconceito. Pois este caminho foi trilhado com cada batalha que se venceu contra o preconceito.

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Quando se trata do uso de drogas, a lógica é similar: são muitas as variáveis que convocam o fenómeno das suas dimensões.  Assim como a prostituição, o uso de substâncias psicoativas existe “desde sempre” e através das comunidades. Segundo Durkheim, cumpre com uma função social. O juízo de valor feito sobre o consumo de substâncias emerge das construções sociais. A reação social é um processo desajustado de condensação simbólica arbitrária. Em Portugal, o consumo de canábis associa-se à ameaça sentida pelos “portugueses do continente” à chegada dos “retornados”. Em África, este consumo era muito mais normativo, e não era relacionado ao crime. Uma abordagem compreensiva não explica que droga se equivalha a crime, explica sim, porque em Portugal se faz esta ligação direta; ambos ameaçadores, amalgamá-los ajuda a discriminá-los e junta o português em torno de um mal comum. A discriminação terá então fundamento? Provavelmente não terá. São as condições criadas para o consumo de drogas que são perigosas, não a substância. Apesar da complexidade deste fenómeno, mostrando a necessidade de abordagem multidisciplinar, importa perceber a relação idiossincrática da pessoa à substância. Abordar o desconhecido sem patologizar torna-se essencial. Façamos como Moser & Kleinplatz que realçam “confundir doença mental com desejo sexual não usual é incompreensível”. Este olhar não patologizante para práticas BDSM aplica-se a qualquer dimensão da nossa vida.

Os temas abordados são complexos, requerem abordagens multidisciplinares e sobretudo revelam que qualquer comportamento é uma escolha. Podemos, como dizia Carl Hart, discutir as alternativas presentes na tomada de decisão de cada indivíduo e se estas eram suficientemente atrativas. Estabelecer que cada voz existe por direito, descredibiliza qualquer movimento preconceituoso categorial, normativo e desviante, restabelecendo uma ordem de direito humano em que cada ser é muito mais do que vemos e imaginamos.

Esta guerra secular contra o preconceito passa por entendermos os mecanismos psicológicos por detrás dos conflitos, elaborarmos um formato de comunicação para desconstruir estes mecanismos e fomentar um reenquadramento saudável da pessoa, do grupo, e da sociedade. Esta promoção é um dos papéis centrais do psicólogo e deve estar na base de qualquer uma das suas intervenções. No entanto, os danos do preconceito são subtis e sistémicos. O mal do preconceito é a dificuldade que temos em encontrar a sua fonte de forma clara, para o corrigirmos como faríamos com um agressor físico, e por ser exercido numa macro-escala com mecanismos seculares que o incrementam. Estes mecanismos exercidos diariamente vão da piada à atuação política e penal. Mantermos um olhar atento, educado e fundamentalmente voltado para a psicologia da paz, poderá ser útil nas batalhas que temos de travar contra o preconceito. Quando por negligência, não abrimos espaço para compreender o outro, perpetuamos o preconceito e em último recurso a violência estrutural que dele resulta. Reivindicar os direitos humanos é reivindicar o direito de todo e qualquer um de nós, nas suas diferenças e nas suas especificidades, é aceitar o outro como pedimos para sermos aceites.

Há altura melhor para percebermos a pertinência do tema? Vamos atuar hoje, para que a realidade de George Floyd não se repita. Vamos quebrar o círculo?

[1] “preconceito”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/preconceito