Desde a criação da Geringonça, em 2015, que as campanhas eleitorais estão condenadas a focar-se nos cenários que poderão sair das urnas. Onde estará a maioria? Serão precisos dois, três, ou quatro partidos? E que partidos? Será que A se juntará com B? Será que C e D conseguirão conversar com E? Contaminando toda a campanha eleitoral, esta conversa traz uma grande ansiedade e imprevisibilidade, dificultando o discernimento dos eleitores. O foco, quer dos políticos, quer dos media, quer do universo de votantes, vira-se das propostas de cada partido e da personalidade de cada candidato para a aritmética de cenários e coligações.

Nestas eleições, esta perda de foco produziu uma consequência particularmente grave: têm passado desapercebidas as ideias do novo líder do partido que governou Portugal nos últimos 30 anos. Mesmo depois de vários meses em campanha – interna, para a liderança do Partido Socialista, e externa, para as eleições legislativas – o que pensa Pedro Nuno Santos é ainda algo turvo e misterioso.

A melhor forma de sabermos o que pensa o líder do PS é ler o que escreveu. Há um artigo, publicado no jornal Público em 2018, no qual Pedro Nuno, de forma clara e completa, descreve em letras muito vincadas o seu ideário. (Recomendo vivamente que este artigo seja lido.)

Só o título do artigo resume muito bem com quem estamos a lidar: “A social-democracia para além da ‘terceira via’”. Sim, a terceira via do dito socialismo moderado, que teve como fundador Tony Blair.

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Caído o muro de Berlim, nos anos 90, a esquerda europeia teve de se reinventar. A falência financeira, económica, social, cultural e política da União Soviética demonstrara que o socialismo, principal modelo dos partidos de esquerda, não funcionava. A inspiração marxista estava esgotada. 1989 revelava que a própria História tinha provado que o projecto socialista não tinha adesão à realidade, que as suas promessas eram ocas e vazias, que as profecias de Marx e Engels tinham clamorosamente falhado.

Perante este cenário desolador para a esquerda, urgia que esta se reformasse profundamente. Foi essa a abordagem de líderes como Blair ao criarem a terceira via. Terceira, porque não era nem liberal-capitalismo (primeira via), nem socialismo-marxista (segunda via). O próprio Blair dizia que: “O Novo Labour é um partido de ideias e de ideais, não um partido de ideologias ultrapassadas. O que interessa é aquilo que funciona.” Esta viragem pragmática deixava de lado o carácter ideológico que caracterizara a esquerda anterior a 1989. E, por cá, ganhou forma nos governos socialistas de Guterres, Sócrates e Costa.

Ora, Pedro Nuno Santos vem rejeitar esta nova esquerda moderada nascida nos anos 90, assumindo-se herdeiro da velha esquerda – aquela que, ao longo dos últimos 25 anos, tinha vindo a habitar no Bloco de Esquerda. É verdade que esta atitude não lhe é inteiramente original. O próprio Labour, no Reino Unido, escolheu em 2015 um líder que assumira a rejeição do legado da nova esquerda e uma reaproximação à anterior – Jeremy Corbin, que encarnava o regresso da esquerda ideológica.

No seu artigo, Pedro Nuno Santos opõe-se ao pragmatismo da nova esquerda, de Guterres, Sócrates e Costa, sem ambiguidades. Escrevia ele: “No plano ideológico, a fronteira entre a esquerda e a direita foi demasiado esbatida, e a corrida para o centro descaracterizou o nosso ideário ideológico, programático e linguístico.”

Seguindo a pegada do extremismo de Corbyn e dos partidos radicais como o Cinque Stelle de Itália, Pedro Nuno mostra-se céptico em relação a aspectos capitais da esquerda moderada, como a valorização do crescimento económico: “No plano do modelo de desenvolvimento, a terceira-via deu prioridade à contabilidade do crescimento económico, independentemente do seu padrão: todo o crescimento da economia e do emprego era positivo, até porque gerava receita.”

E vai mais longe, juntando o centro político com o populismo: “Centristas e populistas partilham a mesma visão de um mundo dividido entre um pólo aberto e outro fechado, divergindo apenas na valorização feita.” Ao colocar o centro no mesmo saco que a direita populista, Pedro Nuno Santos destapa a sua máscara e revela o seu extremismo. Nunca antes um líder do Partido Socialista, de Mário Soares a António Costa, passando por Almeida Santos, Constâncio, Sampaio, Guterres e Sócrates, tinha atacado o centro, assumindo-se tão anti-centrista como anti-populista.

O actual líder do PS está desejoso de levar o Bloco de Esquerda para o governo, até porque nunca deixou de o levar para lá durante os últimos 8 anos. Sim, Pedro Nuno Santos já ficou para a História como o primeiro ministro do Bloco de Esquerda. Resta ter esperança na sabedoria do povo português, para que não venhamos a ter agora um primeiro-ministro do Bloco de Esquerda.