Aqui fica o nosso Processo de Grunhificação em quatro passos.

1º passo: tudo é normal. Experimente-se segurar a porta de um centro comercial ou mais precisamente não repetir aquele gesto de a largar na cara de quem nos precede. Vale a pena a experiência: nem um obrigada. Passam e vão à vida e nós segurando na porta como se fôssemos uns porteiros invisíveis. Mas é normal, não é? E aquele carro mesmo ao nosso lado com o som no máximo? Não vamos dizer nada, pois não? Agora é assim, não é? Também vamos fazer de conta que somos transparentes quando viajamos de comboio e de repente um grupo entra e impõe as suas regras na carruagem: palavrões, pés nos assentos, encontrões… O melhor é mesmo fazer de conta que se estava a pensar sair na próxima estação. E até saímos, claro. Provavelmente é normal e mais normal ainda que aquelas crianças à porta da escola digam dois palavrões em cada três palavras. Ou até que insultem a professora que vai a passar (e faz de conta que não é nada com ela)… A normalização da boçalidade é fundamental num Processo de Grunhificação.

2º passo: a humanização. De repente os governantes estão aos pulos num qualquer estádio. Tem graça, não tem? Até parece que os humaniza! E os políticos que cozinham? E os que fazem de conta que são cabeleireiros? Ficam mais humanos, não é? O conceito de humanização usado nos processos de grunhificação nada tem a ver com humanismo mas sim com desresponsabilização. Um político não quer discutir o seu programa? Cozinha diante das câmaras ou pula nos estádios de futebol.

Quanto mais graves são os actos pelos quais os responsáveis devem prestar contas mais histriónicas são as performances da humanização e seus sucedâneos. Os portugueses morrem no meio do falhanço clamoroso do seu dito serviço de protecção civil? O PR muda de calções em público e vai nadar. Aprovam-se as 35 horas para a função pública sem fazer as contas ao impacto dessa medida no SNS? É a descrispação.

A “humanização” e os seus superlativos “política dos afectos” e “descrispação” são os mecanismos através dos quais os responsáveis se desresponsabilizam fazendo de conta que têm responsabilidades idênticas aos demais cidadãos. Não é verdade, somos todos iguais e somos humanos mas temos responsabilidades diferentes. A encenação da humanização é uma forma de quem tem responsabilidades se desembararçar delas.

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3º passo: o indignadismo. Porque é que uns factos geram ondas de indignação e outros igualmente graves passam de forma quase incógnita? Lembram-se quando as gravuras de Foz Côa não sabiam nadar e a barragem teve de ser interrompida? Agora para o aeroporto ser construído no Montijo não só os pássaros vão aprender outras rotas como o governo anuncia que se prepara para mudar a lei que obriga a que o aeroporto seja aprovado por todos os municípios abrangidos pela infraestrutura! E quando a notícia de que alguém morrera numa ambulância era suficiente para pedir a cabeça do ministro da Saúde? Agora morre-se nas urgências – naquelas que funcionam – à espera de consulta e a ministra sorri. O que mudou? A área política do governo. O monopólio da indignação está à esquerda e esta defende ferreamente o seu monopólio: não só gere com perícia as sucessivas indignações ou a falta delas como, não menos importante, define claramente o que pode ser ou não motivo de indignação: por exemplo, as agressões a polícias são recebidas num silêncio que contrasta com o ruído gerado pela mais simples suspeita de que as forças de segurança não procederam de forma correcta. O indignadismo selectivo mantém a sociedade num estado de frenesim constante, impedindo-a de parar para pensar. Não há PGEC sem indignadismo.

4º passo: o excepcionalismo. Digamos que a coisa foi mais ou menos assim: as excepções começaram por confirmar as regras. Depois as excepções passaram a valer tanto quanto as regras. Agora as excepções ditam as regras. A legitimar este absurdo em que os casos particulares ditam as leis gerais temos o culto das sempre particulares circunstâncias de um eu cuja felicidade implica invariavelmente que legitimemos o que sabemos trazer mais problemas que aqueles que vai resolver: é a mulher cuja felicidade passa por ser mãe e para ela ser mãe temos de aceitar que seja inseminada com o esperma do marido morto; é o casal que quer ter uma criança com material genético seu e como tal acha que pode encomendar uma criança a outra mulher, é a família que acha que o seu parente em estado vegetativo preferia morrer a estar assim (sim, achar que a Fátima quereria certamente morrer não nos pode autorizar a matá-la, não apenas por ela mas sobretudo pelas pessoas a quem esse argumentário poderia ser aplicado)… Individualmente todos estes “eus” estão cheios de razão mas pela mesma razão que não podemos tolerar que o pai a quem torturaram ou mataram um filho faça justiça por conta própria (não é que não tenha razões, não é até que não pensemos que faríamos o mesmo) não podemos aceitar que o sofrimento de cada um legitime a barbárie de um mundo em que o bem comum foi sacrificado à ditadura dos egos. Ou mais precisamente de alguns egos.

No fim acabamos tolerando o que acreditávamos intolerável. Calando o que nos indignava. Pactuando com o que sabemos ser um crime. O Processo de Grunhificação acontece muito rapidamente. Recuperar dele é que demora tempo.