Se o Estado português faliu primeiro moral ou estruturalmente é uma questão que o homicídio de Ihor Homeniuk não esclarece. Se a sua morte será em vão, e pouco ou nada mudará, é algo também por responder. A sua viagem pelos braços do Estado português, pelas entidades públicas portuguesas e pelos serviços públicos portugueses é, em tudo, trágica.
Ihor Homeniuk entrou no território nacional e cruzou-se ou conheceu, pelo menos, duas dezenas de portugueses. Foi entrevistado por vários inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ao chegar, foi examinado, internado e medicado no Hospital Santa Maria durante uma noite, foi transportado pelo INEM e acompanhado por agentes do SEF e por uma tradutora, foi fechado numa sala no aeroporto de Lisboa, assistido por uma enfermeira da Cruz Vermelha, imobilizado por seguranças e, por último, agredido até à morte por três inspetores do SEF, que aguardam agora julgamento.
Nem quem vigiava a sala (“você não vai por aí os nossos nomes”, disseram), nem o médico do INEM que declarou o óbito, nem nenhum outro que interagiu com Ihor Homeniuk ou testemunhou o sucedido foi capaz de parar e salvar um homem despido, amarrado com fita adesiva, encharcado no seu sangue e na sua urina, sem privacidade, sem intimidade, sem dignidade, de morrer de pancada. “Isto aqui é para ninguém ver”, disseram. “Hoje já nem preciso de ir ao ginásio”, disseram. A um ser humano. No nosso país. Com a nossa bandeira no distintivo. Ao nosso serviço. Com o nosso nome.
Foi preciso o cadáver chegar ao Instituto de Medicina Legal ‒ “proveniente da via pública”, disseram ‒ para a autópsia tornar o assassinato evidente e a cumplicidade no encobrimento alcançar os seus limites. O vazio do Estado só terminou quando o corpo de Ihor Homeniuk estava vazio de vida. E a ausência não ficou por aí. Longe disso. Nove meses após o relatado, a diretora do SEF continuava em funções, a família de Ihor Homeniuk permanecia por indemnizar, informar ou sequer contactar pelo governo português e nenhum representante do Estado português havia assumido responsabilidades por um crime cometido no país mais acolhedor, seguro e sorridente da Europa ‒ disseram.
Já nesta coluna havia chamado à atenção para as consequências da constante descentralização de responsabilidades políticas num governo que, literalmente, acabou com o Estado nos seus cinco anos de poder. Nada disso é novo ou surpreendente. A indiferença generalizada da sociedade civil em relação a violações de Direitos Humanos, cá dentro e lá fora, quando não importados de movimentos americanos, também não ‒ e Zita Seabra também já aqui havia escrito há meses, e antes de todos, sobre isso.
O que me choca verdadeiramente é como, depois de conhecidos os factos, depois de revelada a desumanidade, depois de exposta a total omissão do Estado enquanto tal, depois de tudo isto, os políticos continuam a passar culpas para “os jornalistas”, segundo o dr. Cabrita, para o “neoliberalismo”, segundo a dra. Ana Gomes, e para as sondagens desfavoráveis, segundo o dr. Rui Rio. Que tudo isto se tenha passado em nosso nome, no nosso país, com a vida de um homem nas mãos do Estado português, é terrível. Que se faça humor e campanha com isso é uma loucura. Mas é
o próprio SEF que termina, dizendo que não, meus senhores, não constam queixas no nosso livro de reclamações, mostrando que em Portugal o Estado falha, mata e ainda se ri de si mesmo.
E é de nós que ele se ri também.