A história

A enfermagem em Portugal tem um percurso de evolução e reconhecimento académico, superior ao seu reconhecimento no terreno.  Em 1990 passa de um curso geral em enfermagem um Curso Superior de Enfermagem com o grau de Bacharelato e em 1999 é implementado e criado o 1º Curso de Licenciatura em Enfermagem.

Nós os adultos na casa dos 40 e acima, quando pensamos na saúde imediatamente pensamos no médico de família e nas enfermeiras da “vacinação”.

Estes profissionais assumiram um espaço de relevo, especialmente no interior do país, onde os rendimentos eram baixos e o único acesso de “proximidade” (muitas vezes a mais de uma dezena de quilómetros!) eram os médicos de família a quem recorríamos quando estávamos doentes e onde íamos fazer algum acompanhamento, mais ou menos regular, e as enfermeiras da vacinação que nos “perseguiam” na nossa infância, aliás a “perseguição” chegava a ser nas escolas… não havia fuga possível!!!

Os centros de saúde e as extensões eram também lugares-comuns onde os utentes com feridas ou necessidade de tratamentos medicamentosos específicos se dirigiam para receber cuidados de enfermagem.

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Os recursos humanos foram-se tornando escassos ao longo da década de 90 e inícios dos anos 2000 devido a diversas políticas públicas, que passavam por reduzir custos na saúde e o número de funcionários públicos, tendo na saúde em específico, um impacto relevante nos enfermeiros, reduzindo a contratação praticamente a zero entre 2003 e 2005 (excetuando-se no caso de hospitais novos, como é exemplo o hospital de Torres Novas e o hospital do Litoral Alentejano), recorrendo as sub-regiões de saúde a estratagemas mais ou menos elaborados e a roçar a ilegalidade, em que contratavam os enfermeiros através de IPSS para exercerem funções nos centros de saúde em regime de “recibo verde”.

Em 2006 nasceu a reforma dos cuidados de saúde primários.

Esta reforma trouxe consigo uma nova organização dos cuidados de saúde primários, com a desestruturação da carreira de enfermagem, mas simultaneamente com a promessa de mais enfermeiros e também mais ganhos em saúde através de um conjunto de incentivos aos vários profissionais das futuras Unidades de Saúde Familiar (USF), mas acima de tudo (e também na desconstrução da anterior carreira de enfermagem!) uma maior autonomia e independência dos enfermeiros chefes (com tudo o que de positivo e negativo isso trouxe!).

Do enfermeiro do centro de saúde ao enfermeiro de família

Antes do local onde exerço funções passar a USF, a extensão de saúde tinha 4 ou 5 enfermeiros (pois havia sempre roturas noutros locais que obrigava a deslocar enfermeiros para assegurar as outras unidades ou serviços do centro de saúde). Com a passagem a USF a equipa passou a contar com 7 enfermeiros, sendo que a cada enfermeiro passou a ser atribuída uma lista de utentes que trabalham em conjunto com o medico de família do utente e com o secretário clínico, no seio da equipa de saúde familiar.

A transformação daquilo que era o modelo burocrático (antigos centros de saúde) num modelo leve e dinâmico como previsto no modelo da Nova Gestão Pública (responsabilização e autonomia técnica aos profissionais) foi um ganho tanto ao nível da gestão como ao nível dos resultados em saúde promovendo a personalização dos cuidados e por inerência uma maior produção de cuidados e com mais qualidade. Esta transformação originou um ganho brutal de eficiência e eficácia nos CSP, tornando Portugal num exemplo para o mundo. Simultaneamente, a liberdade de organização permitiu que os profissionais se libertassem do funcionalismo público e das amarras da função pública, dirigindo os seus esforços, partilhadamente, com foco nos utentes e nas necessidades destes.

A responsabilidade que estes profissionais passaram a assumir, deixando de trabalhar à tarefa e passando a trabalhar com foco num conjunto de utentes e famílias que acompanhavam ao longo do ciclo de vida, obrigou a uma maior especialização nos cuidados prestados e também numa maior procura de conhecimentos e formação específica.

A Ordem dos Enfermeiros reconhece esta especialização que nasce do terreno, da prática, mas simultaneamente e durante anos (inclusive atualmente!) são criadas diversas barreiras ao reconhecimento destes profissionais e limitando a sua intervenção especializada ao contexto da terapia familiar e diagnóstico de enfermagem da família.

O enfermeiro de família é muito mais do que isso e deve ser muito mais do que isso! É o enfermeiro de proximidade do utente e da família, presta cuidados ao utente na unidade, bem como na casa do utente, conhece o recém-nascido, os pais, os avós, os problemas que afetam aquela família, trabalha lado a lado com o médico de família, facilitando o acesso do utente ao SNS. O enfermeiro de família deve estar presente e acessível aos seus utentes.  Deve ser um pivô no SNS e nos CSP que permita ao utente aceder a cuidados de enfermagem, médicos ou outros de uma forma acessível e simples.

A falta de reconhecimento do Estado, dos sucessivos governos e dos pares…

Os enfermeiros portugueses são os enfermeiros mais diferenciados da Europa à saída da licenciatura em enfermagem, sendo cobiçados por todos os países do mundo.

Apesar disso o reconhecimento destes profissionais em Portugal e mais especificamente no Serviço Nacional de Saúde (SNS) mantém-se sem alterações desde a década 90 do século passado.

Aquilo que era o “enfermeiro do centro de saúde” em 2006 é completamente diferente do enfermeiro de família em 2024, mas ainda assim o Ministério da Saúde recusa-se a reconhecer as competências e o trabalho efetuado por estes profissionais. Em termos de reconhecimento económico-financeiro numa USF a discrepância entre médicos e enfermeiros é brutal.

Figura 1 – Analise dos valores máximos a que cada grupo profissional nas USF tem acesso Fonte: D.L. n.º 103/2023 de 07 de novembro

Os enfermeiros podem aceder no máximo a €19 040/ano em incentivos, enquanto aos médicos o ministério reconhece o seu trabalho (e deve reconhecer!!), cabendo a estes o máximo de €57 176/ano, como médicos de família podendo ser acumulado com a função de orientador, e aí subindo para €64 456/ano e que podem acumular ainda com a função de coordenador, atingindo os €77 196/ano.

Em termos de reconhecimento de competências a situação é tão ou mais grave:

  • Não há justificação clara que suporte que a função de coordenação seja exclusiva da profissão médica, mesmo quando há enfermeiros com vários anos de serviço, especialistas em saúde familiar e com formação avançada em gestão;
  • O não reconhecimento da função de orientação de especialistas em estágio tal como sucede com os médicos de família.

Com diversas redundâncias de cuidados prestados em situação de prevenção da doença (ex: saúde infantil, planeamento familiar, etc) e de controle da doença (ex: diabetes, hipertensão, doença pulmonar obstrutiva crónica, etc.), em que os médicos e enfermeiros repetem consecutivamente os mesmos cuidados aos mesmos utentes aumentando o desperdício e ineficiência do sistema, sendo este problema largamente conhecido da ACSS (pelo menos desde que fazia parte da direção da USF-AN*1 em 2010, em que referi por diversas vezes ao Dr. Alexandre Lourenço esta situação) e da DE-SNS.

Os enfermeiros são a profissão com maior plasticidade na saúde, intervindo em todas as áreas do SNS e adaptando-se continuamente às transformações, como foi exemplo o seu desempenho durante a pandemia de COVID 19.

Os enfermeiros de família, atendendo à necessidade de gerir de forma eficiente os recursos do SNS (materiais, humanos e financeiros) estão capazes, disponíveis e ambicionam o reconhecimento das competências que detêm através do seguimento com autonomia dos utentes saudáveis do SNS e dos doentes controlados, libertando os médicos para áreas onde a sua intervenção é única e necessária.

O SNS tem sofrido alterações profundas nos últimos 30 anos, tanto ao nível da prestação de cuidados como da organização dos serviços e dos profissionais. Os cuidados de saúde primários (CSP) são o exemplo paradigmático disso. Infelizmente os enfermeiros de família sabem que o sucesso deste ganho é devido largamente ao seu trabalho e esforço diário, mas não é reconhecido e a discriminação em relação aos outros grupos é berrante.

Como mudar o SNS tornando-o mais rentável, mas eficaz e eficiente

Todas as profissões da saúde têm o seu espaço de intervenção mais ou menos blindado.

Algo comum à maioria dos países da União Europeia tem sido as transformações nos serviços nacionais de saúde, mas ao contrário de Portugal as grandes reorganizações não foram nas estruturas, forma na recombinação e adequação das competências das diversas profissões da saúde, e aqui leia-se que não passou por “roubar” competências de uns para outros, mas sim o reconhecimento das competências que cada grupo profissional desenvolveu entretanto e na gestão de recursos humanos baseada num único princípio: O que é que só estes profissionais podem fazer?

Aquilo que se fez foi repensar as competências dos profissionais:

  1. º organizar as mesmas em função daquilo que só eles podiam fazer construindo um núcleo duro da sua profissão;
  2. º avaliar as “skillmix” que se podem traduzir por “competências comuns” das diversas profissões;
  3. º por fim determinar que competências, ainda que exclusivas dos diversos grupos profissionais, podiam ser executadas por outros com base em protocolos universais, baseados na evidência e salvaguardando as necessidades e segurança dos utentes (em Portugal temos uma grande experiência nesta área, com resultados únicos no mundo: o Plano Nacional de Vacinação (PNV).

Em Portugal a aposta passa pela reorganização de estruturas, de organizações, com resultados positivos, mas ainda assim irrisórios para aquilo que se investe anualmente no SNS e que tem vindo a crescer desde 2015, mas ainda assim com piores cuidados prestados à população. O enfermeiro de família já existe, já é reconhecido pelos utentes que o reconhecem como tal, mas infelizmente, muitos dos seus pares (e para os sucessivos governos) ainda nos vêem como enfermeiros do “Posto médico”.

Quanto tempo vamos esperar para discutir o futuro?

Quanto tempo vamos assobiar para o lado e achar que os enfermeiros são bem pagos, quando na realidade são das profissões mais capazes, mais mal aproveitadas e mal pagas do país?

Quanto tempo vamos demorar até exigir o fim da discriminação negativa de que somos alvo?

Os enfermeiros de família exigem ser ouvidos! Os enfermeiros de família exigem ser reconhecidos!