Marta Temido tem o estatuto de ministra demissionária, uma figura inovadora na ciência política: há dias não conseguia conciliar o sono porque tinha morrido mais uma pessoa na lotaria dos hospitais e, em vez de tomar um sonífero, ainda que tenha efeitos indesejáveis para a saúde, demitiu-se. Costa poder-lhe-ia ter dito: Ó que grande maçada, Marta, realmente estes falecidos não te deixam em paz. Mas dá-me um ou dois dias para encontrar um socialista qualquer que tenha perfil para continuar a tua bela obra e depois, se ainda te doer a cabeça, demites-te.

Mas não. A demissão foi logo anunciada, já o país estava a dormir. Marta, presumimos, sossegou, e no dia seguinte o caso já não era a tragédia da mulher que morreu em trânsito de um hospital para outro, mas a da preclara ministra que, com grande despojamento, bateu com a porta.

Costa tem agora tempo para escolher, da multidão de candidatos, um que não desagrade às capelas da Saúde socialista, para o efeito de beneficiar do tradicional estado de graça aí por uns dois ou três meses e a seguir funcionar como Marta e quase todos os ministros do desastre costiano – fusíveis. Este é um de valor acrescentado porque já fundiu, mas continua a deixar passar corrente (com Costa os fusíveis ministeriais duram e duram, como ficou amplamente demonstrado com o caso Cabrita, só retirado de serviço quando já tinha a cerâmica estaladiça de tão queimada, mas Martinha inova – está e não está, é e não é, inaugurando a prometedora época dos fusíveis quânticos).

É bem visto. Desde o princípio que Marta mostrou ser uma simpática não-pessoa da esquerda fóssil: o país sadio, claramente minoritário, gargalhou quando confessou, numa entrevista, cantar a Internacional no banho, por concluir que de História, poesia e música não entendia nada, mas tinha saudáveis hábitos higiénicos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A gerir a Saúde foi, previsivelmente, um desastre – v.g., entre muitos outros, este epitáfio. E ver também a brilhante opinião de Daniel Oliveira, papa emérito dos comentadores de esquerda, que acha que Marta nunca teria falhado se tivesse os meios que não lhe foram dados, o típico raciocínio circular dos Daniéis deste mundo – a política de esquerda falha porque não estão presentes os recursos que deveriam estar para que não falhasse.

Lições? i) A arte de conquistar e manter o poder vive muito da aparência e pouco da realidade – a verdade é que se suspendeu o aumento da esperança média de vida e cada vez mais cidadãos pagam a saúde duas vezes, a do SNS a que não recorrem porque não está disponível e a da saúde privada que não é barata. Mas para tudo há o inimigo originado no exterior (a pandemia do ano, Putin, as alterações climáticas, o monstro da inflação, etc.) e uma comunicação social acomodatícia: mau será, mas seria pior se os nossos pastores não velassem por nós; ii) O SNS assenta em pressupostos errados, dos quais o principal é o princípio constitucional da gratuitidade universal e os secundários a confusão entre serviço público e propriedade pública e a equivalência entre gestão privada e pública, como se os incentivos para o bom desempenho de uma e outra fossem os mesmos; iii) Um bom ministro disfarça as insuficiências e reforça a importância da gestão sensata, isto é, recorre sem hesitar à Saúde privada e tenta importar para o sector público as coisas que fazem com que aquela gestão seja melhor. Um mau ministro, como era esta pobre diaba, faz o contrário; iv) Os fusíveis só existem porque os ministros devem o lugar e a carreira a quem os nomeou, não aos eleitores do seu círculo – começam logo por frequentemente não serem sequer recrutados no Parlamento, onde aliás a situação não é muito diferente. Nos casos raros em que o ministro existe para lá dessa condição, é o PM que pensa duas vezes antes de os despedir ou queimar e, no limite, até se pode sentir na obrigação de os recompensar, como sucedeu com Centeno, o demagogo das finanças e da impostagem que se soube tornar indispensável. O sistema inglês, com o qual simpatiza muita gente que arrasta pela vida o desgosto de não ter nascido com aquela nacionalidade, evita esta desgraça mas, se transposto para aqui, originaria outras – um ponto de vista no qual não vou abundar.

Conforme aquela Oposição que pessoas profundas dizem que não existe não se cansa de lembrar, Portugal não cessou, no consulado costiano, de perder posições no ranking das nações no PIB por cabeça em paridade de poder aquisitivo. Costa ficará como o político que ganhou todas as batalhas, tendo perdido a guerra. Mas é pouco provável que gerações futuras venham a dar grande importância a estes tempos: são perdidos e não têm sequer a curiosidade do PREC, que foi um manicómio em autogestão, ou os de Soares, que encabeçou a luta anticomunista, ou os de Cavaco, em que o crescimento justificava a esperança, ou os do pântano guterrista-socrático, entusiasmantes pela falência e pelos crimes, ou sequer os do breve momento passiano, em que um módico de racionalidade  e um iota de reformas fizeram renascer a confiança.

E daí talvez não venha a ser assim: a falência do conjunto de crenças e práticas em que assenta esta governação socialista, e que só a válvula de escape da emigração (uma tragédia em si mesma: Portugal sempre exportou os seus filhos que sobravam nos campos, passou a exportar o capital humano em cuja formação investiu), o maná do turismo e os fundos europeus disfarçam, traduz-se na necessidade de uma explicação: que estranha mesmerização leva a que o eleitorado não veja? Quando António Costa, ao longo de anos, bacorejava futuros ridentes semanalmente na Quadratura do Círculo, era claro que as vacuidades em que acreditava nunca poderiam, se traduzidas em poder, resultar em desenvolvimento – o homem não entende os mecanismos da criação de riqueza, ponto final. O país da opinião ouvia, o outro, que é muitíssimo maior, estava preocupado com o Benfica e o fim do mês. Mas agora, ao fim de 7 anos, continua popular?!

Dá vontade, para quem tenha convicções pouco sólidas, de descrer da democracia. E, todavia, é preciso compreender porque só entendendo as doenças se lhes pode encontrar o antídoto.

Até porque, com tanto fusível e tanta sobrecarga da instalação, não é impossível que um dia ela venha abaixo.

Nota editorial: Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.