“A frugalidade é a qualidade de ser frugal, poupador, económico, prudente ou económico no uso dos recursos de consumo, como alimentos, tempo ou dinheiro, e evitando desperdício, esbanjamento ou extravagância”.
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Tenho vindo a assistir nas últimas semanas a uma espécie de guerra de palavras sobre a forma como os países do Norte e do Sul veem a solução para a crise que se instala com o covid-19 nas nações europeias. O ministro das finanças holandês, Wopke Hoekstra, disse um disparate sobre investigar Espanha e Itália por não terem os fundos necessários para pagar a recuperação do covid-19, ao que António Costa retorquiu com um valente puxão de orelhas classificando como repugnante tal afirmação. Ora esteve bem António Costa que apontou uma clara falta de senso do ministro. Facto que o próprio ministro assumiu mais tarde tendo reconhecido que se as suas palavras causavam tanto clamor algo teria de estar necessariamente errado. Só se pode discordar de tal afirmação, mas é preciso perceber a sua origem, conhecendo a forma de estar dos holandeses.

De uma forma geral, quando é atribuída uma tarefa a um holandês este irá desempenhá-la com o máximo de independência e irá responsabilizar-se totalmente pelos resultados que a si pertencem. Irá de forma muito assertiva realizar o trabalho que lhe compete — aos outros, o que é deles — sem contemplações. Quais são os critérios? Quais são os objetivos? Haverá estratégia e monitorização da estratégia até ao resultado desejado. Chama-se planeamento. Esta atitude nem deveria ser demasiado estranha já que Mário Centeno — o ministro favorito dos portugueses — não estará assim tão longe desses predicados.

Vemos agora nos telejornais a designação de um conjunto de países como “os frugais”. Uma espécie de ironia que se pretende ligeiramente depreciativa para com quatro países, entre os quais a Holanda, os quais não estão muito voltados para se endividar para pagar os custos da pandemia nos países do Sul; aplicar os chamados eurobonds. Esta é uma posição que Portugal não entende, mas perguntemo-nos quando é que alguma vez Portugal esteve na situação de financiar outros países europeus? Curiosamente nas últimas décadas Portugal nunca conseguiu estar nessa posição (talvez tivéssemos de voltar ao reinado de D. João V para ter dinheiro de sobra).

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Entretanto, criou-se este conceito de pobrezinhos e ricos, como se alguns países tivessem encontrado um pote de ouro ao fundo do arco-íris. Se nesta altura não for óbvio para todos, repito aquilo que muita gente diz mas que, ainda assim, não entra na cabeça de todos e de todas: sem a Europa, Portugal estaria agora no fundo do poço por todas e mais algumas razões, e a culpa não seria da Holanda.

Não menosprezemos os contribuintes holandeses, porque também não gostamos que façam de parvos os portugueses. Estes últimos, pouca ou nenhuma defesa têm tido dos governos sucessivos, tanto nacionais como locais, em Portugal. Ninguém nos obrigou a passar cartão ao BES, a Sócrates, ao comendador Berardo; fizemo-lo de boa consciência e, se fizemos asneira devemos assumir as nossas responsabilidades. É necessário evitar recorrer a uma espécie de bode expiatório “norte europeu + Áustria”.

Entretanto vem à colação o assunto das empresas que mudam a sua sede fiscal para a Holanda. “Aqui D’el Rei, que grandes piratas estes holandeses, que roubam o sustento português”. Os mesmos impostos são aplicados às empresas holandesas e mesmo sendo mais baixos, imagine-se, é possível gerir um país com excelentes serviços e qualidade de vida. Recordemos que a Holanda é o 5º país e Portugal o 25º no ranking de PIB per capita na Europa. A mim também não me agrada que estas empresas estejam a pagar impostos na Holanda em caixas do correio. Mas será que as podemos culpar? E será que pagar estes impostos mais baixos não as tornou mais produtivas e capazes de competir em mercados internacionais criando mais empresas e empregando mais portugueses? Considere-se a empresa Jerónimo Martins: não será este o exemplo de uma empresa que orgulha todos os portugueses por ter a importância que tem na Polónia? Estes resultados não aparecem por magia, precisam das condições ideias para germinar e crescer, com profissionais competentes e governos que apoiam esse crescimento dando estabilidade às boas empresas que querem progredir.

Veja-se o que Portugal já perdeu por sua exclusiva responsabilidade, empresas como a PT ou o banco BES, pelos seus vícios, relações duvidosas e ambição desmedida por dinheiro e poder, e não necessariamente ambição por fazer um trabalho limpo e excelente. E com isso fomos minando o futuro do resto da população e daqueles excelentes profissionais que Portugal tem. Quanto do nosso dinheiro não foi investido no BES e na PT, mês após mês, para que essas empresas pudessem empregar os jovens portugueses no futuro? É preciso valorizar aqueles que fazem bem, que são ambiciosos nas suas áreas, é essencial avaliar e exigir responsabilidades.

De vez em quando em Portugal ouve-se “Ah, os portugueses são demasiado críticos!” Não, os portugueses não são demasiado críticos; abordem um holandês para perceber que os portugueses não lhes chegam aos calcanhares em matéria de auto-crítica. A crítica, a exigência e a discussão fazem parte do dia-a-dia do cidadão holandês, com um único propósito, o de melhorar o que não funciona bem. Exigir qualidade, é essa a missão de todos os cidadãos acerca da sua sociedade, e não apenas do governo. Quando ouço o nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, homem que aprecio pelas suas qualidades e que tão bem nos representam em qualquer parte do mundo, dizer ad nauseam que os portugueses são os melhores do mundo, dá-me vontade de rir. Dá-me vontade de rir porque nós não precisamos de uma figura paternal, precisamos de alguém que contribua para a evolução da mentalidade das pessoas enquanto cidadãos e indivíduos, e que exija o melhor de todos nós, especialmente das elites, que tanto nos têm falhado ao longo dos séculos, desde que a Ínclita Geração desapareceu.

Não foi a Holanda que criou o bairro da Jamaica, os baixos salários portugueses, atraso estrutural de um povo que teve séculos para se desenvolver e tantas ou mais oportunidades como os holandeses para enriquecer. Fomos nós o povo português, por sua própria iniciativa e responsabilidade. O mesmo vale para todos os outros países europeus que se referem a uns poucos como frugais. Na Holanda vive-se bem; não é preciso viver em moradias gigantescas e ter o último modelo da BMW. Mas sim, há muito dinheiro; vê-se bem na qualidade das cidades, na qualidade da segurança pública (a polícia está bem equipada e é respeitada), na qualidade do património edificado, ou na qualidade dos transportes coletivos.

Com efeito, há na Holanda uma grande riqueza partilhada. O canalizador e a empregada das limpezas vivem condignamente porque não são menos do que os outros. Este dinheiro multiplica-se porque dá confiança, dá conforto, cria um ciclo virtuoso de aumento de qualidade de vida. E também há dinheiro no banco para viajar, para visitar o Sul e fazer rasgados elogios a Portugal, como tenho ouvido tantas vezes. Naturalmente, haverá sempre gente limitada nos extremos que aproveitam para cavalgar estes tempos para ganhar votos. Na Holanda existe extrema-direita, mas Portugal aparenta querer trilhar o mesmo caminho.

Devemos tentar evitar criar inimigos junto daqueles que estão na origem daquilo que tanto nos tem beneficiado e ajudado, que é uma União que se pretende mais unida e simultaneamente preservando a independência e a identidade de cada país. É meu desejo pessoal que os ministros dos vários países, entre os quais a Holanda e Portugal, que têm tanta História em comum, não se encontrassem apenas duas a três vezes por ano para negociar pacotes de ajuda, mas que se encontrassem para conhecer a forma como cada um lida com os problemas que afinal são comuns a todos. Independentemente das suas cores políticas. A Holanda certamente beneficiaria de discutir com Portugal a forma como lidou com a crise pandémica e Portugal também beneficiaria de discutir com a Holanda a sua política de inovação e economia, ao invés de procurar um novo messias como está agora a fazer.  Mas continuamos a apelidar tais aprendizagens de tecnocracia porque aparentemente, o que nos interessa é ter uma ideologia. Uma espécie de religião, ou mesmo de Benfica versus Sporting.

Para terminar, uma história que eventualmente servirá de bom exemplo da diferença de atitude dos dois países para com o mundo nos últimos séculos. Do Japão os portugueses foram expulsos, país onde tinham sido os primeiros europeus a chegar, e de onde teriam todas as oportunidades de retirar benefícios, mas a escolha foi a de evangelizar e tomar partido naquelas que eram guerras internas daquela Nação milenar. Um só país europeu ficou depois dos tumultos e tentativa de influenciar aquele povo, a Holanda. Àquele país interessava menos converter os japoneses e mais o de comerciar naquele território. Os povos são diferentes, e felizmente o mundo é muito diverso, mas há sem dúvida perspetivas que são mais geradoras de bem-estar do que outras. Portugal, não tem de ser a Holanda nem a Alemanha, nem o Reino Unido, Portugal tem de ser a sua melhor versão. Mas bem que as suas elites poderiam ser mais frugais, talvez agora houvesse mais para distribuir por todos.

Gonçalo Homem de Almeida Correia é doutorado em transportes pela Universidade Técnica de Lisboa (Instituto Superior Técnico) e agregado em sistemas de transportes pela Universidade de Coimbra. Tem uma carreira universitária de mais de 10 anos sendo atualmente Professor na Universidade Técnica de Delft, Holanda, e Professor convidado na Universidade de Beijing Jiaotong em Pequim, China, nos seus programas de engenharia de transportes.