A crise humanitária. O que distingue a Grécia da Venezuela? A crise humanitária. Ou seja, a Grécia vive, no dizer de muitos jornalistas portugueses, uma crise humanitária. Já a Venezuela, com as prateleiras vazias, presos políticos e uma criminalidade elevadíssima, que por sinal afecta e muito a comunidade portuguesa, vai vivendo com algumas dificuldades, nas quais se inclui aquela coisa mais ou menos folclórica de não terem papel higiénico e o facto de os preservativos custarem uma pequena fortuna. Cuba, por exemplo, onde falta quase tudo e também a liberdade, não vive qualquer crise humanitária desde que um tal Baptista (ditador) se exilou no início de 1959 deixando o caminho livre aos irmãos Castro (libertadores) que, para tranquilidade dos nossos activistas sociais, asseguram há 56 anos uma Cuba livre de crises humanitárias.

Quanto a Portugal, é mediaticamente inquestionável que desde 2011 tem vivido em crise humanitária. No arrebatamento com a descrição da nossa crise humanitária há quem recue até ao século passado para dar conta da dimensão inédita da presente crise humanitária: entre aqueles grupos que erravam pelos campos nos anos 20 e 30 em busca de trabalho e os actuais desempregados não há, segundo este ponto de vista, qualquer diferença. Isto para não falar da enorme e anunciadíssima crise humanitária que a alteração do secular congelamento das rendas vai provocar e que confirmadamente levará os portugueses a dormir debaixo das pontes ou quiçá a fazê-los regressar às grutas do vale de Alcântara e da Pedreira da Serafina, onde várias famílias viviam nos tempos em que a crise humanitária em Portugal era bem menos grave que esta que agora atravessamos.

A solução para a crise humanitária passa invariavelmente por aumentar o papel do Estado, a sua despesa e a rede dos seus dependentes: casas sociais, cantinas sociais, serviços públicos gratuitos… Questionar a dimensão da crise humanitária e as respostas que se lhe têm dado – por exemplo quais as consequências para a autonomia das famílias de manter cantinas abertas para que os seus filhos lá comam durante as férias? – transforma qualquer um numa espécie de ogre. Ou mais propriamente numa pessoa sem sensibilidade social.

Sensibilidade social. Declarar-se sensível é geralmente uma boa desculpa para quem se quer poupar a trabalhos: quando a vida dos outros se complica logo os sensíveis desaparecem alegando que “iam ficar muito impressionados”. Sensibilíssimos são também os adolescentes não vão visitar os parentes doentes porque se podem sensibilizar. (Já alguma vez olharam com olhos de ver para os jogos e filmes de culto dos ditos meninos que para irem a um funeral quase precisam de apoio psicológico?) Regra geral as pessoas sensíveis poupam-se àqueles momentos e situações que de bom grado todos evitaríamos mas que os sensíveis por serem sensíveis estão dispensados de viver. Os outros, os insensíveis claro, lá vão aos hospitais, capelas mortuárias, lares… porque como são insensíveis não se impressionam e ainda lhes sobra tempo.

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A este grupo de sensíveis juntou-se agora a legião da sensibilidade social, conceito mais ou menos vago que na prática se traduz por usar um linguarejar que não dizendo nada sobre a vida é um verdadeiro livre-trânsito político-mediático para a bondade.

A afirmação de que ‘a articulação das diversas valências sociais através da implementação de uma política de promoção das competências gera uma dinâmica mobilizadora para as comunidades desfavorecidas’ não quer dizer nada mas faz de qualquer criatura um cidadão-símbolo da sensibilidade social. Tal como o mais vago dos seres se transforma num activista da sensibilidade social se proferir com um ar indignado frases como ‘a exclusão é um fenómeno por si mesmo indutor de novas exclusões. O indivíduo excluído, acaba confinado ao universo a que os diversos códigos a par da construção social o confinam numa espiral de rejeição’.

Em boa verdade nem é preciso falar tanto para que seja reconhecida a sensibilidade social a qualquer um. Basta que ele se afirme contra a austeridade.

A austeridade. Aqui está uma palavra a pronunciar como se se estivesse sofrendo de uma nevralgia. Declarar-se anti-austeridade tornou-se uma espécie de pensamento mágico: sou anti-austeridade logo a austeridade acaba. Nesta luta contra a austeridade os anti-austeritários aproximam-se muito na sua fé daqueles criadores de produtos virtuais do mundo financeiro que prometem ganhos extraordinários sobre o nada: um homem sonha, anuncia e o dinheiro aparece.

Muito do combate à austeridade alimenta-se da convicção (e alimenta-a) de que os recursos são infinitos. Pretender geri-los torna-se uma iniquidade porque na perspectiva anti-austeritária não se podem fazer escolhas mas sim unicamente garantir tudo a todos. Um caso paradigmático desta visão é a certeza de que o SNS tem de garantir a todos o acesso a todos os medicamentos inovadores. Na verdade tal não é possível pois ficaríamos sem verbas mesmo para os velhos medicamentos.

É claro que houve um tempo em que a austeridade foi revolucionária mas isso aconteceu apenas nos governos de Vasco Gonçalves que, desde a sua tomada de posse em Junho de 1974 até que deixou o poder no Verão de 1975, nunca se cansou de falar da necessidade de Portugal e os portugueses adoptarem uma política de austeridade. Feita essa consabida excepção a austeridade tornou-se uma espécie de inimigo público. Não só é quase obrigatório declararmo-nos anti-austeridade como esta está transformada, mediaticamente falando, numa espécie de mania: bastava alguns quererem e acabava-se a austeridade. A austeridade deixou de ser vista como um meio para resolver um problema – a falta de recursos – para se tornar ela mesma no problema e na causa primeira de outros. A fome é um deles.

A fome. Antes da presente crise humanitária, aquela a que a austeridade decidida por pessoas sem sensibilidade social nos conduziu, a fome era uma referência nos romances neo-realistas e nos versos da Internacional cantada por comunistas e socialistas nos seus encontros magnos.

No caso dos comunistas o assunto é mesmo sério pois não se limitam a cantar “De pé, ó vítimas da fome!” como apelam também aos “famélicos da terra”. Apelos que, no meio dos aromas gastronómicos que povoam qualquer encontro do PCP, levam um mortal mais atento a interrogar-se sobre se tal cantoria não se destinará a invectivar os que resistem a empanturrar-se de bifanas e pica-pau nas tasquinhas da Festa do Avante e desse modo resistem a contribuir para os cofres do PCP. Mais paradoxalmente ainda temos o PS que deixou cair os “famélicos da terra” mas mantém um “A pé, ó vítimas da fome”, que dado o ar robusto e blasé de boa parte dos dirigentes socialistas parece uma homenagem às vítimas das dietas-milagre.

Mas seja como for ou pelo que for a imagem da fome é poderosa. Quando uma pessoa com sensibilidade social quer rematar triunfantemente a discussão sobre a austeridade, a que agora se juntou o austericídio, basta-lhe invocar a fome que está a assolar os portugueses e sobretudo as crianças portuguesas. Perante o peso de tal imagem não há quem consiga argumentar a não ser claro que se seja indiscutivelmente de esquerda, como Ana Jorge que em 2010 disse algo que só pode ser dito por uma pessoa de esquerda sem que as redes sociais e as redacções entrem em estado de fúria: “Apelo às crianças e famílias que aproveitem a necessidade de contenção para fazerem sopa em casa, por forma a não gastarem em ‘fast-food’ que, para além de fazer mal, é mais caro”.

Para falar sobre a fome não interessa nada o que se tem feito para a combater ou o que se conhece do fenómeno. Por isso Isabel Jonet, dirigente do Banco Alimentar, ou Manel Lemos, presidente da União das Misericórdias, não têm mediaticamente falando autoridade para falar de fome. Esse é um estatuto apenas reconhecido àqueles que na fome veem não um problema a resolver mas sim o sinal das desigualdades.

As desigualdades. Mal se pronuncia ou escuta a palavra “desigualdade” deve fazer-se uma expressão de indignação. Faz parte da ordem mediática que a desigualdade é uma chaga social, ou seja uma espécie de ferida cruelmente aberta na sociedade. Não fosse esse iníquo prego da desigualdade cravado no mundo e nós seríamos todos iguais.

Mas a condenação obrigatória das desigualdades não se limita a transformar o comunismo uma espécie de paraíso perdido da sociedade. Pressupõe também que a desigualdade só existe porque uns se apropriam do que é dos outros. E mais perversamente ainda que os ricos são ricos porque ficaram com aquilo que é dos pobres.

O combate às desigualdades, que regra geral gera outras e mais perversas desigualdades, tem legitimado tem legitimado desde projectos politicamente totalitários até aos mais variados programas de engenharia social. Por responder fica sempre esta pergunta: se formos todos igualmente pobres já não há problema?